O caso é no Distrito Federal, mas serve como exemplo ao que acontece em várias outras regiões e cidades, ou seja, não há um combate sistêmico aos fatores que levam à falta de água e soluções preventivas e educativas são ignoradas
artigo: Leila Saraiva*
Estávamos em 2016 quando uma preocupação passou a fazer parte do repertório brasiliense: a falta d’água. Há tempos algo andava mudando: os meses cinza, de chuva quase ininterrupta, já não se faziam tão longos. As consequências, antes sentida em nossos corpos com o aumento da secura, passaram também a ter efeitos nos reservatórios a partir dos quais se dá a distribuição de água para as cidades. O tal “volume morto”, que conhecemos dois anos antes com a escassez de água em São Paulo, tinha chegado ao Distrito Federal.
Diante da propagada crise hídrica, o Governo do Distrito Federal (GDF) adotou, entre outras medidas, o racionamento – ou rodízio, como preferiu chamar – revezando o corte do abastecimento da água entre as localidades do DF, de seis em seis dias. Assim, por quase um ano e meio, a população do DF viu modificada sua rotina, vivendo tal situação até o último dia 15 de junho, quando o governo suspendeu a medida.
Se para as classes médias e altas do Distrito Federal a escassez hídrica chegou apenas em 2016, para as periferias ela é uma velha conhecida. Não é possível recontar a história do surgimento das (então) chamadas cidades-satélites, sem relembrar também das longas filas de mulheres e crianças que, com grandes latas, carregavam a água possível para casa. Da caixa d´água da Ceilândia – símbolo da conquista popular do acesso à água no local – à ocupação do hoje chamado Paranoá Velho, que ergueu seus primeiros barracos às margens do Lago Paranoá na época da construção da barragem do Paranoá, a luta pelo direito à água se inter-relaciona e se sobrepõe à batalha cotidiana de pessoas pela sua existência e permanência no território.
Para essas pessoas, a capital da esperança parece não ter sido planejada – e com a crise hídrica não foi diferente. As medidas implementadas pelo governo não apenas partiram dessas desigualdades, mas as reatualizaram. No que tange ao próprio racionamento, essa reatualização se deu especialmente por um fator: o corte do abastecimento de um dia de água ignorou que alguns domicílios possuem caixa d´água enquanto outros não, especialmente em domicílios mais precarizados. Ou ainda que alguns possuam reservatórios próprios de 750 litros, enquanto outros possuem de 5000 litros. O resultado: aqueles com as maiores caixas d´água armazenaram a água nos dias anteriores ao corte, vivendo o racionamento de forma bastante suave. Os outros viveram um ou mais dias sem acesso ao recurso. Os relatos desde o início da adoção da medida apontam para localidades que chegaram a ficar mais de dois dias sem água.
As estatísticas que versam sobre o uso da água no DF confirmam as alegações dos movimentos sociais que vêm denunciando essa desigualdade na gestão da crise. Mesmo tendo reduzido seu consumo em 16% entre 2016 e 2017, o Lago Sul, região nobre da capital, tem um índice de litros/habitante/dia de 366 litros. Já regiões da periferia como a Fercal e o Itapoã apresentam índice de 55 litros e 58 litros, respectivamente. O índice médio no Distrito Federal, segundo a mesma pesquisa elaborada pela Companhia de Saneamento Ambiental do DF (CAESB) é de 129 litros/habitante/dia, motivo de orgulho para o Governo do Distrito Federal, já que agora nos aproximamos do recomendado pela OMS (máximo de 110 litros/habitante/dia).
Ao comemorar a marca dos 129 litros/habitante/dia, no entanto, o GDF ignora que uma parte da população consome apenas a metade da marca da OMS, enquanto a outra consome mais de três vezes o recomendado. Isso sem falar do consumo pouco controlado na área rural: estudos apontam que, entre 1985 e 2015, os números de pivô-centrais instalados no DF passaram de 3 para 233 equipamentos, irrigando agora uma área de quase 13.000 hectares, em um uso intensivo de recursos hídricos.
Como costuma acontecer em momentos críticos em nosso país, as classes populares foram punidas enquanto as ricas seguiram protegidas pelo Estado, numa espécie de transposição da lógica da austeridade econômica para o manejo da crise hídrica.
Orçamento
Apesar das críticas constantes, o governo declarou o fim do racionamento alegando ter revertido o quadro da escassez de água no Distrito Federal. Não apenas o racionamento, mas uma série de outras medidas adotadas teria ampliado a capacidade hídrica local e afastado períodos sombrios que se avizinhavam.
No diagnóstico que consta no Plano Integrado de Enfrentamento à Crise Hídrica (2017), o próprio governo explica que não se pode pensar a questão da água de forma isolada, pois são vários os fatores que levaram ao quadro de escassez: mudanças climáticas e degradação do meio ambiente, desmatamento predatório da vegetação típica do Cerrado, captações clandestinas de água, ocupações irregulares que ocasionaram a impermeabilização do solo e do assoreamento de mananciais e nascentes. No mesmo documento, o GDF assegura que as soluções para a crise precisam também ser pensadas em dimensões e direções múltiplas e propõe ações planejadas divididas em quatro frentes: Infraestrutura, Educação, Comunicação e Regulação.
As execuções orçamentárias do governo, no entanto, não parecem consonantes com essa visão multidimensional. Segundo o PPA 2016-2019, o principal programa temático para questões socioambientais, chamado “Infraestrutura e sustentabilidade socioambiental”, funciona como um guarda-chuva das questões elencadas como principais desafios na área. Entre eles, está a garantia do acesso à água e saneamento básico para todos/as em uma população crescente, assim como a preservação dos recursos hídricos. Dois objetivos do referido programa temático se relacionam ao tema da água. O primeiro, “Capital das águas”[1], trata especificamente do cuidado e preservação da água no DF, estando aí agrupadas as principais ações orçamentárias sobre a questão. O segundo, “saneamento ambiental[2]”, abrange também outras áreas, mas contém ações orçamentárias relacionadas ao direito e acesso à água pela população do DF.
A partir da análise da execução orçamentária dessas ações[3], vemos que o GDF gastou nesses dois objetivos, entre 2016 e 2018 (até a presente data), R$ 25.953.943,75. O investimento parece significativo, ainda que passe longe dos R$275 milhões investidos apenas pelo Governo do Distrito Federal no grande empreendimento Corumbá IV[4]. Esses quase R$26 milhões, no entanto, mudam de figura quando sabemos que 77% do que foi gasto serviu para custear o 8º Fórum Mundial da Água. Conhecido como o fórum das corporações, o evento já foi alvo de nosso escrutínio justamente pelo alto investimento de recursos públicos para sua realização, além ter sido também alvo de uma forte mobilização por parte de vários setores, articulados principalmente entorno do FAMA (Fórum Mundial Alternativo da Água).
A situação, no entanto, se torna ainda mais grave quando sabemos que diante de um alarmado contexto de crise hídrica, a realização do evento tenha sido prioritária para o governo, em detrimento de ações como as de fiscalização, preservação de mananciais, educação ambiental e conservação dos recursos hídricos.
Algumas das ações citadas no programa – ainda que ocupem lugar importante nos discursos do governo – sequer tiveram qualquer execução durante os três anos analisados, como a AO2580 – Conservação de recursos hídricos. Outras, como a que possibilita o fortalecimento da gestão das águas (3266 – Fortalecimento da gestão das águas – água boa no DF) e a “Educação Ambiental” (4235) tiveram execução orçamentária pífia – respectivamente R$5.760,00 e R$5.960,00. São números tão pequenos que nos fazem duvidar do que vemos. Em tempos de crise hídrica, são esses os totais pagos pelo governo nas principais ações de preservação, cuidado e garantia da água:
Soluções
Os números acima contrastam com os alardeados publicamente pelo GDF, que alega ter investido cerca de R$500 milhões para a superação da crise. Esta quantia, no entanto, refere-se à construção de obras de infraestrutura, como a própria Corumbá IV, o Subsistema do Bananal e o Subsistema Emergencial do Paranoá, sendo financiadas por fundos como o Fundo Constitucional do Centro Oeste. Seguindo uma longa tradição da política brasileira, os principais investimentos do GDF apostam em obras vistosas que, mesmo que ampliem o acesso à água, beneficiam empreiteiras e não tratam das causas e efeitos de médio e longo prazo dos problemas que as justificam. Além disso, há ainda uma complexa rede de interesses no que tange aos lucros gerados a partir das obras para a própria CAESB, atualmente uma empresa de capital misto, e cujos rendimentos tem sido monitorados pelos veículos econômicos e as políticas de atendimento e direitos dos trabalhadores, enfraquecidas.
Não é, claro, o caso de ignorar que a garantia de novas fontes de recursos hídricos seja importante para evitar o desabastecimento, mas de afirmar que a preservação de mananciais, a educação ambiental e a fiscalização dos usos de água por setores como a agricultura são ainda mais fundamentais para evitar o problema em sua origem, sendo possível, por esses caminhos, fazer retroceder cenários desoladores. Se desde já sabemos que aausência de chuvas não está desconectada da expansão desenfreada das fronteiras agrícolas e do expansivo desmatamento da Amazônia; que a torneira seca não independe da destruição do cerrado, e que o ressecamento de mananciais não está desligado dos efeitos perversos dos grandes empreendimentos, concluímos que só é possível encarar e combater a crise hídrica sob uma perspectiva sistêmica.
Mananciais preservados, no entanto, não geram retornos financeiros milionários, não financiam campanhas e tampouco apresentam resultados que deem conta dos calendários eleitorais, embora sejam eles os que vão garantir que, a médio e longo prazo, não nos vejamos novamente diante de torneiras sem água. Enquanto a ADASA gastou, em 2017, R$ 2.019.442,99 em publicidade e propaganda, as soluções preventivas – aquelas a serem tomadas quando a preocupação é de fato a segurança hídrica da população – foram deixadas de lado.
[1] “Promover a cultura do cuidado com a água, o aperfeiçoamento do marco normativo e institucional e garantir a oferta de água em quantidade e qualidade para a população e os ecossistemas naturais, a conservação e a recuperação das áreas de recarga de aquífero, nascentes e matas ciliares e áreas de proteção de mananciais” (Distrito Federal, PPA 2016-2019, p.201)
[2] Garantir serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial e gestão de resíduos sólidos, com regularidade e qualidade, assegurando a proteção ao meio ambiente e à saúde da população. (Distrito Federal PPA 2016-2019, P.207)
[3] Ações orçamentárias do “Capital das águas”: “Elaboração do Plano de Negócio” (1947), “Conservação de Recursos Hídricos”, “Monitoramento da Rede Hidrometeorológica e Telemétrica do DF” (2671), “Outorga de Uso de Recursos Hídricos” (2679), “Regulação dos Usos dos Recursos Hídricos no DF” (2683), “Construção do Museu da Água”(3067), “Realização do 8º Fórum Mundial da Água” (3068), “Construção do Centro Internacional de Ref. em Água e Transdisciplinaridade – CIRAT 203” (3256), “Fortalecimento da Gestão das Águas – Água Boa no DF” (3266), “Realização de Eventos”(3678), “Fiscalização de Recursos Hídricos” (4135) e “Educação Ambiental” (4235). Ações orçamentárias selecionadas do “Saneamento Ambiental”: “Expansão do Sistema de Abastecimento de Água” (1827), “Expansão do Sistema de Abastecimento de Água – Corumbá” (1831), “Expansão do Sistema de Abastecimento de Água na Área Rural” (1848), “Manutenção de Redes de Águas Pluviais” (2903), “Melhorias nos Sistemas de Abastecimento de Água” (7006), “Implantação de Sistema de Abastecimento de Água” (7038).Todas do programa temático “Infraestrutura e Sustentabilidade”.
[4] O projeto de construção da usina Corumbá IV está em discussão no DF pelo menos desde os anos 90 e sua obra começou a ser executada há 13 anos. Diante da crise hídrica de 2016, o GDF passou a propagandeá-la como principal solução para a questão, já que garantirá uma ampliação significativa da captação de água para distribuição no DF e Entorno. A construção da usina, ainda em andamento, requereu um investimento de R$550 milhões, sendo metade oriundos do GDF e a outra do Governo de Goiás, financiadas pelo Governo Federal. Ao longo de sua história, a obra de Corumbá IV foi paralisada algumas vezes devido à denúncias de corrupção que interromperam o repasse de verbas do Ministério da Cidades, como a ocorrida em 2016, que identificou um sobrepreço de 388% na obra. Foi depois da propagada crise hídrica no DF que o repasse voltou a ser feito. (fonte: Carta Maior)
*Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Publicado originalmente em Inesc.org.br.