artigo – Vicente Andreu*
No meio do caminho tinha uma privatização…
A imprensa tem publicado matérias muito boas sobre os impactos da escassez de chuvas nos grandes reservatórios do setor elétrico no Sudeste, entre eles Furnas. Fui olhar os dados e há uma aparente mudança de prioridades em relação às que foram adotadas no gerenciamento das crises entre 2014 e 2017. Chamou minha atenção a manutenção de volumes elevados em Ilha Solteira enquanto o reservatório de Furnas está extremamente baixo, opção distinta das tomadas naqueles anos, ainda mais porque Ilha Solteira foi privatizada em fins de 2015, com regras favoráveis à venda de energia, que tem seus preços elevados em situação de reservatórios baixos. Neste artigo compartilho com o leitor as razões desta preocupação.
O Brasil tem um parque gerador hidráulico muito relevante, que corresponde a cerca de 72% de toda a energia elétrica do país. Neste parque gerador, o chamado sistema Sudeste/Centro-Oeste é o mais importante, que responde por cerca de 60% desse total. Números redondos.
É um sistema muito complexo, cuja operação atende aos requisitos de segurança energética considerando todo o território nacional e diversos outros fatores ambientais, navegação, prevenção de enchentes, usos múltiplos, etc. Há uma tendência do setor elétrico em transformar essa complexidade, real e verdadeira, numa caixa preta que utiliza para justificar suas opções, que não são necessariamente as únicas opções possíveis. Felizmente isto tem mudado nos últimos anos com a condução do Operador Nacional do Sistema-ONS, responsável por definir a operação de todo o sistema elétrico brasileiro, por Hermas Chipp e Luís Eduardo Barata. Tenho esta opinião a partir de muitas interações entre ANA e ONS na gestão de crises hídricas a partir de 2012.
O subsistema Sudeste/Centro-Oeste é composto por várias bacias hidrográficas diferentes, cada uma delas com várias usinas e podemos destacar três pontos principais de controle que estão em bacias distintas mas que pela posição estratégica, pelo volume de seus reservatórios ou pela capacidade de geração, permitem ter uma visão panorâmica de todo esse importante subsistema, dos seus volumes e das opções de geração. São: a Usina de Furnas, pelo tamanho de seu reservatório, numa ponta; Ilha Solteira, com reservatório e geração relevantes numa posição intermediária e Itaipu na ponta final, pela sua insuperável capacidade de geração. As crises hídricas nestas bacias imensas são administradas com princípios diferentes de bacias menores, como a do Cantareira, destinado exclusivamente para o abastecimento de água ou a Bacia do Rio Paraíba do Sul, que tem um geração de mais de 1.000 MWs, o que é significativo mas cujas prioridades são o controle de cheias e o abastecimento de suas cidades, entre elas a cidade o Rio de Janeiro.
Com as crises hídricas no subsistema Sudeste/Centro-Oeste a partir de 2014, foram adotados alguns princípios:
1- poupar os reservatórios de cabeceira (aqueles que estão na parte mais alta dos rios) pois eles são estratégicos para segurança do sistema elétrico, o que significa reduzir suas descargas, como o reservatório de Furnas.
2- Manter descargas altas em Ilha Solteira como compensação da redução nos reservatórios de cabeceira, o que implica deplecionar (reduzir) o volume de seu reservatório. Para situações muito críticas, suas descargas também podem ser reduzidas e foram feitos testes em Ilha Solteira, por requisitos ambientais, para reduzir sua descarga normal em torno de 4.000 m³/s para cerca de 2.000 m³/s e constatou-se que esta opção é possível.
3- Privilegiar a geração em Itaipu, em razão de sua enorme capacidade de geração (e por conta do tratado com o Paraguai, que impõe certas regras)
4- Executar as operações minimizando impactos em outros setores, como a hidrovia Tiete-Paraná.
Como falei no início, são bacias hidrográficas imensas e as operações são decorrentes também das chuvas nessas bacias, que tem comportamento distinto. Em 2015, a bacia do Paranapanema, afluente ao rio Paraná mais próximo de Itaipu, recebeu chuvas intensas, o que abriu o menu de opções, mas mantida a prioridade defendida pelo ONS de preservar os reservatórios de cabeceira.
Aos números: na tabela abaixo destaco os volumes dos três reservatórios, Furnas, Ilha Solteira e Itaipu no dia 30 de julho dos anos de 2013 (sem crise), 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 com crises diferenciadas, mais ou menos intensas.
Em relação a Itaipu, nota-se a manutenção de seus volumes, pelas razões já expostas. Nos anos de 2013(sem crise) e 2016 (quando voltam as chuvas) os reservatórios de Ilha Solteira e Furnas tem volumes elevados. Nos anos de crises intensas, 2014 e 2015, houve o deplecionamento total de Ilha Solteira, procurando-se poupar ao máximo o reservatório de Furnas em razão de sua condição estratégica de cabeceira. Em 2017 há um pequeno repique na escassez de chuvas e a operação em Ilha Solteira buscou manter em funcionamento a Hidrovia Tiete-Paraná. Em 2018, ano novamente de chuvas muito baixas, o padrão está visivelmente alterado com o reservatório de Furnas, que está abaixo da sua pior condição no dia 30 de julho em 2014 e 2015, enquanto Ilha Solteira está com 91,6%. Vai vender muita energia e caro e vai ganhar muito dinheiro, mesmo tendo que manter as condições de operação da Hidrovia Tiete-Paraná, fixada pela ANA para o contrato de concessão na cota 325,40 metros, o que restringe a operação do reservatório abaixo de 45% de seu volume.
Penso que o ONS deve esclarecer porque está secando o lago de Furnas e mantendo Ilha Solteira em níveis elevados, pois isso vai contra as prioridades definidas por ele nas crises anteriores ou (…)tinha uma privatização no meio do caminho?
*Vicente Andreu – é estatístico pela Unicamp, exerceu o cargo de Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas (ANA) de 2010 a janeiro de 2018. Exerceu, entre outros, os cargos de Diretor da CPFL, Presidente da SANASA-Campinas/SP, Secretário Municipal de Planejamento Urbano e Meio Ambiente de Campinas/SP, Diretor-Presidente da Usina Termoelétrica Nova Piratininga e Secretário Nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente. Ex-diretor do Sindicato dos eletricitários de Campinas e palmeirense.
Artigo publicado originalmente em GGN