Entrevista com Roberto Andrés, pesquisador e professor na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. para o portal da Unisinos. Na avaliação dele, as novas atribuições da ANA, como a regulação dos serviços de saneamento, “gerará precarização”. Além disso, adverte, “a obrigação que se quer propor de que os municípios realizem licitação dos serviços de saneamento pode parecer boa, por favorecer a concorrência, mas não funciona assim em um segmento essencial que demanda tantos investimentos públicos”
A edição da Medida Provisória – MP n° 844 – a MP do Saneamento – editada em julho pelo presidente Michel Temer, propõe uma atualização do Marco Legal do Saneamento Básico. Entretanto, informa Roberto Andrés, “há uma forte mobilização das entidades do setor contra a medida”, porque a MP institui a “obrigação de licitação para prefeituras contratarem os serviços de saneamento, novas atribuições para Agência Nacional das Águas – ANA e estímulo à privatização das companhias estaduais de saneamento — como a Companhia de Saneamento de Minas Gerais – Copasa”.
Na avaliação dele, as novas atribuições da ANA, como a regulação dos serviços de saneamento, “gerará precarização”. Além disso, adverte, “a obrigação que se quer propor de que os municípios realizem licitação dos serviços de saneamento pode parecer boa, por favorecer a concorrência, mas não funciona assim em um segmento essencial que demanda tantos investimentos públicos”, porque “é evidente que as empresas privadas disputarão os municípios superavitários, deixando os deficitários para as estatais. Essas, por sua vez, terão menos recursos para investir. Com as estatais enfraquecidas, aumentará a pressão para privatização dessas empresas”.
Andrés lembra que a privatização parcial da Companhia de Saneamento de Minas Gerais em 2003, no governo Aécio, “distribui mais de 1,7 bilhão de reais em dividendos a seus acionistas”. O valor, garante, “seria suficiente para construir pelo menos 10 estações de tratamento de esgoto de alta capacidade e é maior do que todo o investimento nas mais de cem obras que estão sendo executadas atualmente pela companhia”. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, em São Paulo, informa, “chega a registrar lucros anuais de dois bilhões de reais em períodos sem crise hídrica. A situação se repete, em escalas variadas, em outros estados”.
Na entrevista a seguir, Andrés comenta ainda as várias tentativas brasileiras de universalizar o serviço de saneamento básico e informa que várias cidades do mundo têm remunicipalizado o saneamento básico. “Cidades que haviam privatizado seus serviços a partir da década de 1990, como Atlanta, Berlim, Bogotá, Buenos Aires, Budapeste, Jakarta, La Paz, Nice e Paris, retomaram o fornecimento público de água. (…) Grandes cidades entraram na onda e o país atinge 1% de remunicipalização por ano, desde 2008. Em Paris, uma auditoria mostrou que as concessionárias maquiavam custos para justificar tarifas até 30% acima do contrato. A remunicipalização, em 2010, permitiu uma economia de 35 milhões de euros no primeiro ano. Mesmo nos Estados Unidos, onde impera a cultura de mercado, a tendência tem sido pelo saneamento público. De 2007 a 2013, a população atendida por serviços privados de água reduziu em 7 milhões, enquanto os serviços públicos ampliaram seu atendimento em 17 milhões de pessoas”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a medida provisória em trâmite no Congresso Nacional que visa privatizar o saneamento básico no Brasil?
Roberto Andrés – O governo federal editou uma medida provisória (MP 844/2018) que institui mudanças na gestão do saneamento básico no país. Entre seus pontos estão a obrigação de licitação para prefeituras contratarem os serviços de saneamento, novas atribuições para Agência Nacional das Águas – ANA e estímulo à privatização das companhias estaduais de saneamento — como a Companhia de Saneamento de Minas Gerais – Copasa.
Há uma forte mobilização das entidades do setor contra a medida. Parece evidente que as novas atribuições da ANA (como a regulação dos serviços de saneamento) sem previsão de reestruturação da agência gerará precarização. E a obrigação que se quer propor de que os municípios realizem licitação dos serviços de saneamento pode parecer boa, por favorecer a concorrência, mas não funciona assim em um segmento essencial que demanda tantos investimentos públicos.
Hoje, na gestão do saneamento, há municípios superavitários (onde o Estado já fez investimentos suficientes) e há aqueles que ainda demandam muitos investimentos. Em muitas situações, no balanço das estatais, uns compensam os outros: os recursos que sobram de um lado são utilizados para se investir no outro.
Se a licitação passar a ser obrigatória, é evidente que as empresas privadas disputarão os municípios superavitários, deixando os deficitários para as estatais. Essas, por sua vez, terão menos recursos para investir. Com as estatais enfraquecidas, aumentará a pressão para privatização dessas empresas.
IHU On-Line – Na prática, quais são as implicações de se privatizar o serviço de saneamento? Quais são as vantagens e desvantagens disso para resolver os problemas de saneamento?
Roberto Andrés – Desde a sua privatização parcial, em 2003, pelo governo de Aécio Neves em Minas Gerais, a Copasa distribuiu mais de 1,7 bilhão de reais em dividendos a seus acionistas. O valor seria suficiente para construir pelo menos 10 estações de tratamento de esgoto de alta capacidade e é maior do que todo o investimento nas mais de cem obras que estão sendo executadas atualmente pela companhia. A Sabesp chega a registrar lucros anuais de dois bilhões de reais em períodos sem crise hídrica. A situação se repete, em escalas variadas, em outros estados.
Há um descompasso evidente. Como é possível que se contabilize e distribua lucro se há uma carência gigantesca no saneamento no país, que ainda não trata cerca de 60% do esgoto produzido? Os objetivos de uma empresa pública (universalização do acesso, acessibilidade das tarifas, investimentos de longo prazo) se chocam com os de uma corporação de capital aberto (maximização dos lucros), especialmente em um contexto de regulação fraca.
A ideia de que o “livre mercado é mais eficiente” costuma pautar o senso comum, mas ela nem sempre vence a prova dos fatos. Ainda mesmo porque não é possível haver “livre mercado” na concessão de bens essenciais que só podem funcionar em regime de monopólio e no qual o princípio da exclusão, essencial para a lógica de mercado, é indesejável.
Veja-se o caso da Sabesp, que em tempos de crise hídrica oferta descontos para que empresas com grande consumo paguem pela água até 50% menos do que uma residência comum. O desconto poderia fazer sentido para um fabricante de chicletes ou celulares, que têm seus custos reduzidos em vendas de atacado, mas é um despropósito na gestão das águas, em que um dos objetivos principais é a contenção do consumo para garantir o fornecimento.
IHU On-Line – A propósito, poderíamos dizer que a questão do saneamento é um projeto historicamente nunca levado a sério por nenhum governo brasileiro?
Roberto Andrés – Os esforços no tema foram distintos, mas nunca da envergadura necessária. Já no contexto da Guerra Fria e dos esforços de supremacia dos Estados Unidos, a Carta de Punta Del Este, assinada por diversos países latino-americanos, propunha alcançar, em dez anos, 70% de acesso ao esgoto para populações urbanas.
Com as turbulências políticas do período e um golpe militar, essa meta jamais virou agenda, tampouco política pública. Em 1970 o país tinha somente 22% da população urbana com acesso a rede de esgoto. Os militares propuseram a meta de aumentar esse número para 50% em dez anos — mas chegaram a somente 37%.
Na virada do século, os Objetivos do Milênio estabelecidos na conferência da ONUpropuseram oito metas, sendo uma delas a de dobrar a população com atendimento adequado de esgoto até 2015, tomando como base os números de 1990. Mais uma vez, não deu. O governo brasileiro divulgou ter cumprido sete das oito metas — faltando somente a do saneamento. Naquele momento, se tudo andasse bem daí para frente, a meta de 2015 seria alcançada em 2020.
Um novo documento respaldado pela ONU foi elaborado na Conferência Rio+20, e resultou em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O sexto deles é garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos. O item 6.1 estabelece a universalização do tratamento adequado de esgoto até 2030.
No Plano apresentado pelo governo federal em 2013, estimava-se que seria necessário investimento da ordem de 300 bilhões de reais para universalizar o tratamento de esgoto no país em vinte anos. Através do Programa de Aceleração do Crescimento, realizado desde 2007, foram investidos cerca de 100 bilhões de reais em obras de saneamento.
Um estudo que analisou 340 obras do PAC do Saneamento mostra que o programa atingiu resultados, mas a passos lentos. Em 2016, 45% das obras do PAC 1 (2007-2010) ainda estavam em execução ou paralisadas. Um ponto raramente abordado é sobre a qualidade socioambiental desses projetos, vários deles com um viés similar ao das grandes obras de engenharia dos anos de chumbo. Captar o esgoto é importante, mas isso pode ser feito de muitas maneiras — destruir os territórios com avenidas sanitárias e córregos canalizados tem sido, infelizmente, a escolha preponderante nas cidades.
IHU On-Line – Até que ponto o Estado está tirando o corpo fora e até que ponto está, ao contrário, jogando a favor da iniciativa privada?
Roberto Andrés – A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – Cedae, estatal de saneamento doRio de Janeiro, cuja privatização foi colocada como condição pelo governo Temer para ajudas federais ao Estado, é superavitária. Basta olhar os balanços no site da empresa para ver que ela arrecada mais do que gasta. A meu ver, o principal interesse do governo de Michel Temer, o mais impopular da nossa história, é abrir o “mercado de saneamento”, para usar um termo utilizado em uma portaria do governo.
Não é preciso conhecer a fundo os bastidores para imaginar que este processo gerará algum tipo de premiação para os responsáveis pela abertura desse mercado, quando algumas empresas começarem a lucrar enormemente com áreas em que o Estado já fez muitos investimentos. Também não é difícil imaginar que essa premiação será usada para bancar os honorários advocatícios quando alguns perderem o foro privilegiado. No apagar das luzes de um governo que tenta implementar uma agenda que não teve a validação das urnas, busca-se levantar algum trocado. O espírito parece ser esse.
IHU On-Line – O que significa entregar um bem comum, a água, à iniciativa privada?
Roberto Andrés – O pacto social estabelecido nos países ricos durante o período de crescimento após a Segunda Guerra Mundial teve como base uma divisão entre livre mercado e atuação pública que operou mais ou menos assim: para os itens não essenciais, livre-mercado; já os serviços e produtos essenciais, como água, saneamento, transporte, iluminação pública, entre outros, eram fornecidos pelo Estado ou tinham regulações e subsídios, para que tivessem custo acessível.
Não fosse isso, o custo de reprodução da força de trabalho se tornaria muito alto, tornando inviável a industrialização desses países. A partir dos anos 1980, começa-se a ensaiar o rompimento desse pacto, e uma das linhas é a privatização do fornecimento de água e do saneamento. Isso gera uma enorme tensão social em muitos lugares. Na Europa, muitas privatizações foram revertidas. Na América Latina, a tentativa de privatizar o fornecimento de água na Bolívia, que gerou rapidamente um sobrepreço, resultou na Guerra pela Água — uma grande revolta popular que convulsionou o país e acabou revertendo a privatização alguns meses depois. A lógica de mercado, que em bens como a água só pode se dar por monopólios, torna muitas vezes esses serviços insuportáveis, pela pressão nos preços de algo que não podemos viver sem.
IHU On-Line – Esta estratégia de entregar o abastecimento e tratamento de água à iniciativa privada já foi tentado no Brasil no século XIX. Como e por que o serviço entrou em colapso?
Roberto Andrés – Até o início do século XIX, a rede de abastecimento e saneamento do Brasil era composta pela violenta escravidão que aqui se praticava. Escravos eram responsáveis por buscar água nas fontes e por dar destino ao esgoto doméstico. As implicações desse sistema ainda podem ser sentidas, quando vemos tantas periferias em que as redes de esgoto não chegaram ou quando vemos, ainda, bairros ricos em que os moradores não fazem o menor esforço para separar o lixo.
A partir de meados do século XIX, começam a operar empresas estrangeiras no fornecimento de água e tratamento de esgoto no Brasil. Os serviços, sem licitação e em regimes de monopólios, atendiam somente à parcela mais rica da sociedade. A maioria continuava se virando como dava.
O modelo privado, oriundo da Inglaterra, persistiu até o final do século XIX, quando colapsou por inaptidão. O crescimento das cidades agravava os problemas sanitários, e crescia o consenso de que eles só poderiam ser resolvidos pela atuação pública. Começaram a ser criadas, nos países ricos e em seguida na periferia do capitalismo, instituições públicas de saneamento.
IHU On-Line – Por que bens essenciais, como a água, por exemplo, não deveriam funcionar sob o regime de mercado?
Roberto Andrés – Volta e meia, a privatização aparece como panaceia para os males do setor público. Argumenta-se que os investimentos privados aumentarão os recursos e que uma gestão mais eficiente melhorará os serviços. Convém entender porque isso não acontece tantas vezes. Como coloca o economista Ladislau Dowbor, a água é “um bem escasso, que pertence a um espaço econômico local e cuja demanda é muito inelástica: as pessoas pagarão qualquer preço por um bem que é vital”.
Na gestão das águas e do saneamento, é impossível haver livre concorrência. Imagine o caos infraestrutural se várias empresas competissem pelo fornecimento de água ou pelo saneamento e o desperdício resultante: redes de abastecimento duplicadas ou triplicadas, estações de tratamento que não tratariam o esgoto das concorrentes etc. É justamente para ter uma oferta racional e com máximo de aproveitamento de recursos que esses serviços funcionam em regimes de monopólios regionais.
O problema é que os monopólios regionais na iniciativa privada, por mais que tenham sido fruto de licitações com regras específicas, têm historicamente aberto espaço para sobrepreços e precarização dos serviços. Outro problema grave é o investimento de longo prazo: cada vez mais, nossos recursos naturais demandam um trabalho cuidadoso, consciencioso com o uso e com investimentos direcionados para a preservação, a manutenção, e o longo prazo.
IHU On-Line – Que experiências em nível global de reestatização, sobretudo municipalização, dos serviços de abastecimento e tratamento de água estão sendo feitas?
Roberto Andrés – Centenas de cidades mundo afora têm remunicipalizado o saneamento básico. De 2000 a 2015, foram 235 casos, segundo um estudo produzido por diversos institutos. Cidades que haviam privatizado seus serviços a partir da década de 1990, como Atlanta, Berlim, Bogotá, Buenos Aires, Budapeste, Jakarta, La Paz, Nice e Paris, retomaram o fornecimento público de água.
É um tanto simbólico que a França — país ícone da privatização da água no século XX e sede das maiores multinacionais do setor — hoje lidere as iniciativas de remunicipalização. Grandes cidades entraram na onda e o país atinge 1% de remunicipalização por ano, desde 2008. Em Paris, uma auditoria mostrou que as concessionárias maquiavam custos para justificar tarifas até 30% acima do contrato. A remunicipalização, em 2010, permitiu uma economia de 35 milhões de euros no primeiro ano.
Mesmo nos Estados Unidos, onde impera a cultura de mercado, a tendência tem sido pelo saneamento público. De 2007 a 2013, a população atendida por serviços privados de água reduziu em 7 milhões, enquanto os serviços públicos ampliaram seu atendimento em 17 milhões de pessoas. Uma pesquisa feita pela ONG Food & Water Watch, em dezoito cidades americanas, encontrou uma redução média de 21% nas tarifas com a remunicipalização.
A história se repete em cidades de contextos variados, conforme mostra a pesquisa aqui citada. Via de regra, a remunicipalização responde aos mesmos problemas: desempenho medíocre das empresas privadas, subinvestimento, maquiagem de custos operacionais, aumento desproporcional de tarifas, dificuldade em monitorar as ações, falta de transparência financeira, demissões em massa.
IHU On-Line – Como a questão do saneamento está diretamente relacionada ao nível de adoecimento das populações das regiões em desenvolvimento?
Roberto Andrés – Estamos falando de um problema gravíssimo que afeta, principalmente, as populações mais pobres. A Organização Mundial de Saúdeaponta que 80% das doenças em países em desenvolvimento são causadas porsaneamento precário. Um estudo feito pelo Instituto Trata Brasil mostra que, entre 100 municípios brasileiros, os dez com melhor índice de tratamento de esgoto, em comparação com os dez piores, tiveram três vezes menos casos de diarreia, cinco vezes menos óbitos por dengue e quatro vezes menos casos de leptospirose.
Um estudo do BNDES estima que 65% das internações hospitalares de criançascom menos de 10 anos sejam provocadas por males oriundos da deficiência ou inexistência de esgoto e água limpa; e que o rendimento escolar de crianças que vivem em áreas sem saneamento básico é 18% menor que o da média.
IHU On-Line – Como o descaso com a questão sanitária produz impactos diretos na economia?
Roberto Andrés – Há prejuízos econômicos em todas as áreas. Setenta e seis mil pessoas são internadas por ano com problemas gastrointestinais, devido à falta de saneamento. Isso gera um custo de 26 milhões de reais por ano para o SUS. A Organização Mundial de Saúde calcula que para cada real investido em saneamento, quatro são economizados na saúde.
Somente no ano de 2012, 300 mil trabalhadores brasileiros se afastaram do trabalho por diarreia, resultando em 900 mil dias ausentes. O resultado é de mais de um bilhão de reais em horas pagas, mas não trabalhadas por ano; 25% disso é culpa do esgoto a céu aberto. No turismo, estima-se que a universalização do saneamento geraria cerca de 500 mil postos de trabalho no país e mais de 7 bilhões de reais por ano em salários.
Há ainda os altos custos de captação de água de boa qualidade em localidades cada vez mais distantes do uso. A pesquisadora da Universidade de Stanford Newsha Ajami, diretora de um programa voltado para os problemas da seca na Califórnia, se espantou ao chegar a São Paulo no meio da crise hídrica e ver um rio no meio da cidade. Despoluir o rio e usar suas águas poderia ser uma solução muito mais barata, em longo prazo, do que construir reservatórios enormes e buscar água em outros estados.
Tudo isso sem falar do lazer e do bem-estar. Afinal, qual é o custo de liquidar o acesso a rios e lagos limpos, que melhoram a qualidade do ar, reduzem a temperatura do entorno e oferecem alternativas de recreação de alta qualidade? Qual será o custo pago adiante no tratamento de uma sociedade estressada e doente, na exclusão gerada pelos clubes privados e academias, no combate ocioso às drogas e à criminalidade?
IHU On-Line – Considerando a atual situação das metrópoles brasileiras, que modelo de saneamento básico seria preciso e desejável para o Brasil? Na prática, como ele deveria ser implementado ou que tipo de política permitiria sua implementação?
Roberto Andrés – Em teoria, as estatais de saneamento deveriam atuar por concessões dos municípios, que teriam autonomia para definir metas, serviços e o próprio fornecedor. Na prática, a herança do período militar, em que planejamento e gestão do saneamento estiveram extremamente centralizados nas esferas estadual e federal, fez com que boa parte dos municípios não conseguisse, até hoje, construir autonomia técnica e política para ter uma titularidade efetiva sobre os serviços.
Para adicionar mais complexidade à situação, com a onda neoliberal da década de 1990, alguns estados começaram a se desfazer de ações das companhias de saneamento, que passaram a ser negociadas em bolsas de valores. Empresas como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, em São Paulo, e a Copasa, em Minas Gerais, têm hoje quase metade do seu capital pertencente a acionistas privados.
A geringonça institucional resultante pode ser resumida assim: municípios são os titulares dos serviços de água e esgoto, mas muitos deles não têm efetivo controle sobre as companhias estatais; estas, por sua vez, têm parte de seu capital aberto, e os acionistas pressionam para aumento da lucratividade.
Hoje, o que sabemos é que a privatização não funciona: os objetivos de curto prazo das empresas de gerar lucros chocam-se com os objetivos coletivos de universalização do acesso, de acessibilidade das tarifas e de investimentos de longo prazo. Mas também conhecemos os limites do modelo estatal-autoritário-burocrático herdado dos governos militares.
A prestação de contas da empresa privada é anual: nos balanços contábeis que devem apresentar dividendos a serem distribuídos aos acionistas. Já nos governos, os balanços se dão a cada quatro anos. A gestão dos bens essenciais precisa superar o binário Estado-Mercado, porque a perspectiva de longo prazo é cada vez mais urgente.
Seria preciso que a sociedade assumisse para si a gestão e o controle das companhias de água e saneamento, como na exemplar Iniciativa 136, na Grécia, que propunha que cada cidadão investisse 136 euros para aquisição coletiva das ações da EYATH, companhia de saneamento que estava sendo privatizada. A cooperativa cidadã seria o maior acionista da EYATH, que passaria a ser regida por princípios de transparência e controle social, e se tornaria uma empresa sem fins lucrativos.
A viabilização desse tipo de empreitada coletiva é um tanto complexa, mas talvez esteja nesse híbrido de utopia e pragmatismo o caminho para, muito além do autoritarismo tecnocrático estatal e da exploração gananciosa do falso livre mercado, termos água limpa e esgoto tratado em pleno século XXI.
(fonte: IHU/Unisinos)
Roberto Andrés é professor na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e doutorando em História das Cidades na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU-USP. É editor da revista Piseagrama, pesquisador do grupo Cosmópolis e escreve quinzenalmente sobre cidades no jornal O Tempo. É revisor do Journal of Public Spaces e membro da Rede de Inovação Política da América Latina. Foi pesquisador da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais e sócio fundador do Instituto Maria Helena Andrés. Foi cofundador da plataforma bim.bon e da startup Hometeka, ambas voltadas para especificação e simplificação de processos em arquitetura e design.