“Essa proposta é resultado da pressão do capital, da iniciativa privada, que quer atuar na área de maneira mais intensiva”
Prorrogada pelo governo federal, a medida provisória (MP) do Saneamento (844/2018) tem até o dia 11 de novembro para ser aprovada pelo Congresso Nacional. Se isso não ocorrer, ela perde a validade. Essa é a torcida de diversos setores e especialistas, já que a ‘MP da Sede’, como ficou conhecida, abre portas para atuação do setor privado, excluindo as diretrizes que preconizam a participação direta dos municípios na elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico – a medida propõe atualizar o marco legal do saneamento, criado a partir da Lei 11.455/2007 (Lei Nacional do Saneamento Básico) atribuindo à Agência Nacional de Águas (ANA) a competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento e alterando questões estruturais da lei Favorável à proposta, a Casa Civil avalia que a MP contribui para a universalização dos serviços de saneamento.
Contrário a esta avaliação, o especialista em saneamento e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Luiz Roberto Moraes ressalta que a MP da Sede representa um retrocesso, “porque destrói uma importante luta da sociedade após a Constituição Federal de 1988”.
Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, ele observa que a Lei Nacional de Saneamento Básico foi um avanço ao estabelecer a “regra do jogo” do saneamento no país.
O que essas mudanças significam para o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab)?
Primeiro é preciso lembrar que, após o processo da Constituinte e a promulgação da Constituição Federal, o Brasil levou 18 anos para regulamentar um dispositivo, que é o artigo 21, que coloca sob competência da União as diretrizes para o saneamento básico. Foi a partir daí, em 2006, que conquistamos a Lei Nacional de Saneamento Básico [11.445/2007] –sancionado em 5 de janeiro de 2007, pelo então presidente Lula [Luiz Inácio Lula da Silva],. Essa lei estabeleceu princípios fundamentais muito importantes para área de saneamento, além de diretrizes e instrumentos para implantação da norma. Entre os instrumentos, o principal é o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Esse Plano já foi elaborado em um processo participativo, apreciado e aprovado por quatro conselhos nacionais – Conselho Nacional de Recursos Híbridos, Meio Ambiente, Saúde e das Cidades –, após um processo de consulta pública que levou dois meses. Eu mesmo, como cidadão, fiz nove emendas ao documento. Foi aprovado em dezembro de 2013, com a regência de 20 anos, com investimentos estimados em R$ 508,45 bilhões, dos quais 59% seriam de responsabilidade do governo federal, que daria em torno de R$ 15 bilhões por ano.
Foram organizados três grandes programas: um voltado para o saneamento básico integrado para as cidades; outro voltado para o saneamento rural, ou seja, para as populações do campo, da floresta e das águas; e um terceiro, que provém de medidas estruturantes, chamado saneamento estruturante, voltado aos gestores e prestadores de serviços, visando trabalhar a questão do planejamento, da elaboração dos planos, a formação e capacitação de pessoal e o desenvolvimento de ciência e tecnologia e inovação na área de saneamento. Este último trata de medidas importantes para que todos os outros programas pudessem funcionar. Esse plano vem sendo implementado com investimentos menores do que aqueles que foram estimados, e a MP, que vem com o discurso de modernizar a Lei Nacional de Saneamento Básico, em suma diverge da Lei, que não tem que ser modernizada, ela precisa ser implementada de forma integral. A Lei do Saneamento traz dispositivos extremamente importantes, que não estão sendo postos em prática, inclusive os próprios princípios fundamentais, como a utilização das tecnologias apropriadas aos contextos social, econômico, cultural, ambiental e institucional. Aí vem o governo federal e lança essa MP, mesmo após reações de diversas entidades da área de saneamento básico alertando para a importância promover mudanças por meio de projeto de lei, que caminhasse no Congresso Nacional. Mas não, de maneira autoritária, o governo baixa uma medida, que só deveria ser utilizadas em caso excepcional, quando o assunto é de urgência e relevância, e esse não é o caso. A própria MP tem um artigo estabelecendo vigência para três anos, então isso deixa claro de que não se trata de urgência. Essa proposta é resultado da pressão do capital, da iniciativa privada, que quer atuar na área de maneira mais intensiva. Óbvio que o setor privado pode e sempre atuou na área, desde o tempo da ditadura militar. Foi inserido no Plansab, através do banco Itaú e do Banco Nacional de Habitação, por meio do qual as empresas privadas faziam projetos de engenharia, construção das instalações, implantavam os sistemas físicos, fabricavam os equipamentos e matérias necessários. Mas as empresas privadas querem mais, querem pegar o próprio serviço para administrar e operar, porque aí podem ditar o que vai ser feito dentro da lógica do mercado, para conseguir os maiores ganhos possíveis.
O objetivo dessa MP é atender os interesses da iniciativa privada, com o discurso de que o país vive uma crise fiscal – nós que militamos na área do saneamento vimos esse discurso em algumas outras épocas –, sob a justificativa de recorrer ao capital privado, para que possa investir em saneamento. E essa é uma outra falácia, porque o capital privado provém geralmente dos bancos públicos. As empresas pegam dinheiro emprestado a juros subsidiados da Caixa Econômica Federal, do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], do Banco do Nordeste do Brasil e até mesmo do Banco do Brasil, para poder investir em saneamento e não aportar o seu capital na área de saneamento. Fica muito claro o objetivo dessa MP e a forma como ela foi feita, mesmo com a reação de entidades tradicionais na área, como a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento [ASSEMAE] que defende os interesses dos municípios que prestam os serviços públicos de saneamento básico.
A Casa Civil argumenta que a MP 844 uniformiza e fortalece a regulação na área de saneamento, por meio de diretrizes para a Agência Nacional de Águas (ANA). A gestora também entende que a MP atende os anseios da CNI, que quer que o BNDES expanda seu programa de concessões, com a análise dos mercados do setor para mais estados e municípios. Além disso, um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) que indica que o Brasil não deverá universalizar o esgotamento sanitário antes de 2054 e nem o abastecimento de água antes de 2043. Quais são os interesses da CNI nesse processo? Esses dados são reais?
A CNI defende o interesse das indústrias, inclusive as indústrias que atuam na área de saneamento, sejam os fabricantes de materiais, sejam os fabricantes de equipamentos ou a própria indústria da construção civil. Havia a estimativa para o período de 20 anos de investimento na ordem de R$ 508,45 bilhões, para universalizar o serviço. Isso dá uma média de R$ 25 bilhões por ano, dos quais R$ 15 bilhões seriam de responsabilidade do governo federal. Mas se o governo federal, ao invés de investir R$ 15 bilhões por ano, investe de sete a dez bilhões de reais por ano, obviamente que fica faltando uma quantidade de recursos para que o saneamento seja universalizado e o prazo para cumprimento da meta precisa ser ampliado. É isso que o estudo da CNI apresenta: se os investimentos continuarem menores, o prazo para a universalização precisa ser estendido para 2033. A grande questão é o porquê se continua a investir valores menores. Por que o saneamento não é prioridade em termos de política pública e social? Ou seja, a gente precisa fazer uma análise e buscar no orçamento geral da União de 2016 (R$ 2,572 trilhões) que o que foi disponibilizado para o saneamento representou 0,02%, para a saúde, 3,90% e para educação, 3,70%. Agora para pagamento dos juros e amortizações da dívida pública interna e externa, o percentual foi de 43,94%. Ou seja, ao colocarmos isso num gráfico de pizza, veremos que quase a metade da fatia foi para pagamentos dos juros. Esse é um nicho de interesse do “mercado”. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), que é a entidade que reúne os maiores presidentes de indústria de base no Brasil, faz parte desse lobby pela privatização dos serviços públicos de saneamento. A entidade, junto com a Abcon [Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto] e a CNI, pressiona para a ampliação do espaço do capital, da iniciativa privada, em um serviço que é essencial à vida das pessoas. Eles mudam a lógica desse serviço, de um serviço público que deve ser prestado com qualidade e quantidade suficientes e a preços menores para a população, substituindo pela compreensão do saneamento básico como um ambiente de negócio, de que a água é mercadoria, uma commodity.
Qual é o papel da ANA nesse cenário?
A ANA é o órgão gestor das águas e não deveria incorporar o saneamento, porque o saneamento é usuário da água. Então eu acho que do ponto de vista conceitual, tem uma questão muito cara: como a ANA vai privilegiar o usuário da água? Além disso, a agência não tem expertise para trabalhar com saneamento básico. Como é que a ANA vai entrar para ser a instituição que vai estabelecer normas de referências nacionais para os serviços públicos de saneamento básico, se ela não tem competência nessa área? A própria MP não propõe nada em termos de orçamento para que a ANA possa acumular essa função. Por outro lado, o próprio governo federal tem no Ministério das Cidades a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, que possui um departamento de planejamento e regulação. Então, se tivesse que estabelecer algumas normas de referência nacional para regulação do serviço público de saneamento básico, teria que ser feito por lá. Lembrando que é uma função de gestão municipal, porque a titularidade dos serviços de saneamento básico é municipal. O artigo 30, inciso cinco, da Constituição Federal traz como competência dos municípios a organização e prestação direta, ou sobre regime de concessão ou permissão, dos serviços públicos de interesse local. Aí estão incluídos os serviços públicos de saneamento básico. Então, porque a ANA tem que entrar? Sou completamente contrário a essa posição. É uma MP centralizadora, tentando puxar para Agência essa atribuição, conflitando, inclusive, com outro órgão do governo federal, que foi criado pra poder coordenar a implementação da Política Nacional de Saneamento Básico.
Eu não acredito que falte dinheiro. Acredito que o dinheiro proveniente da arrecadação dos impostos que nós pagamos é mal distribuído, mal utilizado. Precisamos colocar o dedo nessa ferida
Na mesma ocasião, Martha Seillier, assessora chefe especial da Casa Civil da Presidência da República, também lembrou que o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) calcula que os investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário precisam ser da ordem de R$ 15,2 bilhões por ano nos próximos 20 anos. Esse dado é real? O investimento público seria capaz de suprir essa necessidade?
Eu não acredito que falte dinheiro. Acredito que o dinheiro proveniente da arrecadação dos impostos que nós pagamos é mal distribuído, mal utilizado. Precisamos colocar o dedo nessa ferida. A sociedade brasileira precisa entender que aumentando os recursos, qualificando o gasto público, você já está fazendo com que mais recursos sejam utilizados no atendimento com os diferentes componentes do saneamento básico, os diferentes serviços públicos que compõe o saneamento básico, e não apenas o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. Por isso, é necessário que o Brasil faça uma auditoria pública da dívida, já que os deputados federais e senadores não assumem a determinação constitucional de analisar isso mais a fundo. Tem um exemplo muito importante na América Latina, do Equador, onde o presidente tomou a decisão de auditar a dívida pública e viu que 70% dela já tinha sido paga. Foi então que chamou os credores internacionais e falou para eles que não iria pagar. Pegou esse valor e investiu em educação e saúde públicas, que melhoraram consideravelmente no país. Nunca teremos isso aqui no Brasil, o que a gente vê é a aprovação do Congresso Nacional da Emenda Constitucional 95, que congela por 20 anos os gastos públicos com saúde, educação e assistência social. É um absurdo!. A sociedade brasileira precisa discutir isso, precisamos ampliar mais a participação no saneamento, o dinheiro tem que aparecer, não pode ser reservado para continuar a pagar os juros e as amortizações da dívida pública brasileira. A sociedade precisa conhecer o que é essa dívida pública, ela precisa ser auditada. No site da Auditoria Cidadã, podemos encontrar muitas informações de conteúdo, com dados oficiais do significado da dívida pública do Brasil. É importante que a mídia, inclusive, divulgue para sociedade esse movimento da auditoria cidadã da dívida, para que isso possa ganhar força total. É preciso mexer nesse lado da pizza, trazendo uma parcela para os investimentos importantes no país, entre eles o saneamento básico. É importante esclarecer também que, como está na Lei, o conceito de saneamento básico foi ampliado. Ele não é entendido apenas como abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas agrega o manejo de águas pluviais, águas de chuva, o manejo de resíduos sólidos, embora a gente veja que ele esteja mais voltado para os serviços de água e esgoto, porque é o nicho de interesse da iniciativa privada. O lobby da Abcon junto à Casa Civil foi maior do que a reação contrária à MP de outras associações, como a Associação Brasileira de Agentes Estaduais de Saneamento Básico [Aesbe], a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental [ABES] e a própria Associação Brasileira de Agências de Regulação [ABAR]. Esse governo que está aí tenta radicalizar a visão de saneamento como negócio, e não a visão de saneamento como um direito social, como algo importante e essencial à vida de todas as pessoas.
Em 2010, foi estipulado que um Plano Municipal de Saneamento Básico seria a condição necessária para que as cidades pudessem ter acesso a recursos do orçamento da união ou recursos financiados pelo governo federal para a realização de obras no setor. Porém, uma pesquisa divulgada no dia 19/9 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que ¼ dos municípios brasileiros não possuem nem estão desenvolvendo uma política pública e/ou plano estruturado para gestão dos sistemas de saneamento básico. Podemos considerar uma fragilidade do Plansab? Essa MP poderia reverter essa situação?
A Lei 11.445/2007 e a Lei dos consórcios públicos 11.107/2005 conseguiram trazer uma contribuição na gestão dos serviços públicos de saneamento básico, que deixaram de ser confundidas com a prestação de serviço para serem compostas por quatro funções de gestão: o planejamento, cujo instrumento é o Plano Municipal de Saneamento Básico; a regulação, que é o estabelecimento de normas e padrões que assegurem a qualidade do serviço e que também faz a regulação econômica e financeira da prestação de serviço; a própria prestação do serviço; e a fiscalização da prestação dos serviços em que o ente fiscalizado se utiliza do instrumento de planejamento, ou seja, do plano, e utiliza os instrumentos regulatórios para fiscalizar o prestador de serviços. O controle social é transversal a essas quatro funções. Essa é a nova lógica dirigente no Brasil na área de saneamento que pouca gente conhece. Então, todo município deve ter elaborado, com a participação do controle social, o seu instrumento de planejamento na área de saneamento, que é o Plano Municipal de Saneamento Básico. Para que essas cidades elaborem seus planos, elas precisam de recursos financeiros do governo federal. Os próprios governos estaduais também podem contribuir nesse processo. A pesquisa Munic [Pesquisa de Informações Básicas Municipais] mostra que, até 2017, o número de municípios no Brasil que tinham Política Municipal de Saneamento Básico formulada e de planos municipais de saneamento básico elaborados chegava perto de 42% e que 25% não tinham nem plano nem política elaborados. É um número ainda elevado. E a MP flexibiliza isso mais uma vez, para atender os interesses das empresas privadas, colocando no artigo 11, parágrafo quinto da MP, que podem ser dispensados a exigência de plano e o estudo de habilidade técnica e econômica com as condições de validade dos contratos a serem firmados entre um município titular de serviço, seja aquele que tem a atribuição de organizar e prestar diretamente ou conceder algo a um terceiro. Com a MP, os estudos podem ser substituídos pelos planos contratados pelo titular. É um absurdo, porque foi uma luta resgatar o planejamento para a área de saneamento. O planejamento vem sendo feito de forma participativa, não foi feito por nenhum prefeito dentro de seu gabinete, para atender o interesse do capital. Não se pode dispensar o controle social para substituí-lo por um estudo contratado pelo titular, que pode ser um estudo mínimo. No próprio artigo 11, há uma modificação no inciso dois, quando é suprimido na MP a existência do estudo que comprove a viabilidade técnica e financeira da prestação dos serviços, que anteriormente estava na Lei. Também desaparecem os termos universal e integral. E universal quer dizer para todos e integral quer dizer todos os serviços do saneamento básico necessários para aquela sociedade. São modificações feitas para atender os interesses da iniciativa privada. Ora, qual é a lógica do capital? Se existe dinheiro, será feitolobby para que esses recursos financeiros venham para as medida estruturais, para privilegiar a compra de materiais e equipamentos fabricados, as empreiteiras para as construções de sistemas. Já as medias estruturantes ficam para quando aparecer o dinheiro, elas não são prioridade. Por isso, há uma grande defasagem. Os municípios não têm recursos financeiros para elaborar esse plano, e aí eles batem na porta do governo estadual, principalmente do governo federal para poder ter os seus instrumentos de planejamento e os planos elaborados.
Martha Seillier, em palestra no dia 7 de agosto, durante o 7º Encontro Nacional das Águas (ENA 2018), em São Paulo, defendeu que os investimentos em saneamento só serão ampliados por meio da participação do setor privado. A MP vai suprir as lacunas das deficiências profundas em saneamento básico, que afetam fortemente a qualidade de vida do povo e a competitividade da indústria? Ou só a competitividade da indústria?
Fica claro que a Casa Civil coloca o discurso do capital, discurso da iniciativa privada. É óbvio que se eu estou em um governo que é ultraliberal, radicaliza na questão da abertura, é o mercado que dá a visão do saneamento como negócio. Assim, vou pressionar e defender essa direção. É o caso dos gastos do orçamento geral da União executado, aqueles trilhões de reais que eu falei de 2016 e 2017, com a participação do saneamento básico de 0,03% e a maior parcela destinada ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Ou seja, enquanto a gente não resolver esse problema, o discurso vai ser o discurso da crise fiscal do estado do brasileiro. Não se mexe nesse lado da parcela da dívida e vai mexer exatamente no outro lado, onde estão as políticas públicas sociais. A luta da sociedade brasileira é conquistar essa auditoria da dívida pública do Brasil, fazer com que o novo Congresso Nacional se comprometa a fazê-la e, também, participar, acompanhar para saber o quanto esse gasto suga uma parcela considerável de um trilhão de reais todo ano, o quanto essa parcela realmente é dívida do Brasil. Enquanto isso não acontece, o capital vai ficar o tempo todo pressionando para entrar de maneira mais agressiva. As parcerias público-privadas, garantidas pela Lei 11.074, permitem que essas empresas trabalhem com segurança jurídica. Por outro lado, essas parcerias já se mostram ineficientes em diversos locais. Na Europa, um relatório do Tribunal de Contas mostrou o resultado de uma auditoria feita com quatro países, em que eles mostram diversas mazelas nas parcerias público-privadas e chegam à conclusão de que os países europeus não estão preparados com quadros técnicos e jurídicos, para essa modelagem de parceria. Agora, no Brasil essa situação é muito pior. A gente vê que o privado quer ir de maneira bem rápida, com muita sede no fundo do pote, se apropriando do parceiro público, sob o discurso de que vai trazer recursos para viabilizar o empreendimento, sem dizer que até 90% dos recursos são viabilizados pelo parceiro público. Então, são questões que tem que ser discutidas de maneira mais detalhada com a sociedade brasileira.
Então um dos principais objetivos da ‘MP da Sede’ é atrair mais investimentos privados para o setor? Existem riscos nessa estratégia? Quais serão as consequências para as metas de universalização e qualidade na prestação dos serviços?
O discurso é esse de atrair, face à crise fiscal que o país enfrenta, investimentos privados com segurança jurídica e risco zero para área do saneamento básico. Então, como eu posso vislumbrar a universalização dos serviços se a lógica do privado é lucro, é não correr risco, é atuar nas áreas onde mora a população que tem capacidade de pagar pelo serviço prestado? Quem que vai sofrer? As populações de periferia, as populações das cidades menores, as populações das comunidades tradicionais. É aí que se dá a lógica do subsídio cruzado das companhias estaduais de água e esgoto, para garantir apenas dois componentes de saneamento: água e esgoto. Essas companhias estaduais prestam serviço por delegação do município, por meio de um convênio de cooperação entre o dono delas, poder público estadual, com um município interessado que o serviço seja prestado, e depois firmando um contrato de programa entre a companhia estadual de água e esgoto com o município. Essas companhias prestam serviços em diversos municípios de um estado, e aí ela obtém superávit, ou seja, arrecadação maior do que a despesa. Já em alguns poucos municípios, ela acaba tendo um déficit, pois são deficitários, a despesa é maior do que a receita e há um equilíbrio exatamente por causa desse subsídio cruzado. Então, só para citar um exemplo: no estado da Bahia, existem 417 municípios e a companhia estadual de água e esgoto atua em 366, e desses 20 equivalem à 80% da receita bruta da companhia, enquanto os 346 municípios restantes equivalem apenas à 20% da receita bruta. Aquela receita oriunda dos 20 municípios acaba subsidiando o déficit dos 346 municípios. Por que a MP coloca dispositivos no sentido de oportunizar a empresa privada a abocanhar esses sistemas ou esses serviços mais rentáveis? O que é que vai sobrar para os outros municípios? Como é que eles vão sobreviver? Consequentemente, eles vão prestar um serviço de qualidade inferir. Não precisa ir longe, nós temos o exemplo da Saneatins, Companhia de Saneamento do Estado de Tocantins, quando foi privatizada em 2010 pela Odebrecht Ambiental, devolvendo 78 municípios para o estado. ’Toma aqui de volta para vocês, porque esses municípios não nos interessam’. N nós vamos ficar com esses 47 de cá, porque a gente não corre risco, obtém o lucro certo e líquido, esses daí são problema de vocês’. Dessa forma, o estado de Tocantins teve que criar a Agência Tocantinense de Saneamento, e se buscarmos informações de como o serviço está sendo prestado, veremos o grau de dificuldade e precariedade que essa Agência tem encontrado Não é essa lógica que eu desejo para que se conquiste a universalização dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil. Teremos que travar um embate com os interesses do capital, da iniciativa privada, de um governo que radicaliza em ver o saneamento como oportunidade de negócio, que tenta convencer o quanto é importante a inserção da empresa privada, porque ela vai trazer recursos e investimentos para a área de saneamento básico. Eu acho que vai ser um retrocesso para o saneamento no Brasil. Defendo a implementação da Lei Nacional de Saneamento Básico. Se a gente conseguir implementar os dispositivos que estão ali, já significa um bom caminho andado com vistas à universalização.
Se a gente quer aperfeiçoar a Lei Nacional de Saneamento Básico, vamos elaborar um projeto de lei, vamos encaminhar para a Casa legislativa, vamos discutir, ouvir a opinião de diferentes segmentos da sociedade
A MP retira dos municípios a responsabilidade de criar projetos para a área e deixa a cargo do setor privado pensar essa nova organização e os investimentos para o saneamento básico. No entanto, cidades de Paris, Buenos Aires, La Paz e a brasileira Itu (SP) são exemplos de iniciativas que falharam e tiveram que fazer a remunicipalização dos serviços de saneamento, retornando o serviço ao controle público, deixando de renovar contratos com empresas privadas por causa de aumento das tarifas, não cumprimento de metas e ausência de transparência. Qual é a probabilidade de que essa MP seja aprovada e quais seriam as consequências a curto e longo prazo?
O mundo inteiro está fazendo um movimento de remunicipalização, reestatização dos serviços públicos de saneamento básico, e não apenas de água e esgoto – os resíduos também estão incluídos nesse contexto. Há um levantamento mundial, feito entre 2000 e 2016, que mostra que boa parte de 267 municípios de diversos países remunicipalizaram e reestatizaram os serviços públicos de água e esgoto. Em 31 deles, incluíram os serviços públicos de resíduos sólidos. Sendo campeã a França, onde então as duas maiores transnacionais do mundo, a Veólia e a Suez, que operavam Paris. A prefeitura não renovou o contrato com elas, criou um órgão público municipal, que vem prestando serviço com melhor qualidade a um preço mais módico. É um caso simbólico que podemos usar como exemplo. Buenos Aires [Argentina], Atlanta[Estados Unidos], Budapeste [Hungria], Berlim [Alemanha] e Kuala Lumpur [Malásia] fizeram o mesmo. Ou seja, estão mostrando que as empresas privadas que assumiram o serviço de saneamento foram com tanta sede no pote e não cumpriram o que estava estabelecido nos contratos, as tarifas muitas vezes aumentaram de maneira descomedida, gerando uma reação da sociedade muito grande. São diversas razões que levaram muitos municípios a retomarem esses serviços, como o caso daqui do Brasil, de Itu, que acabou criando a companhia Ituana de Saneamento Municipal, que vem prestando serviços depois do desastre que foi a atuação da iniciativa privada na cidade. Enquanto o movimento a nível mundial é esse, o Brasil quer modificar a Lei para poder ampliar, de maneira descomedida, a atuação da iniciativa privada na área, tendo instrumentos como a lei das concessões públicas no Brasil, como a própria lei das parcerias público- privadas. Mas eles vão querer sempre mais porque é a lógica do capital. É necessário que a sociedade se manifeste contra ela. Acredito que essa MP não vai ser aprovada e já tem duas ações diretas de inconstitucionalidade: uma que o PSB [Partido Socialista Brasileiro] deu entrada; e outra do PT [Partido dos Trabalhadores], tramitando no Supremo Tribunal Federal. Além disso, ainda não foi definida a Comissão Mista que vai apreciá-la e dia 11 de novembro é o prazo final para que ela seja apreciada e aprovada, senão irá caducar. Enquanto sociedade civil organizada, estamos lutando contra a MP, por considerá-la bastante danosa ao saneamento básico do país. Se a gente quer aperfeiçoar a Lei Nacional de Saneamento Básico, vamos elaborar um projeto de lei, vamos encaminhar para a Casa legislativa, vamos discutir, ouvir a opinião de diferentes segmentos da sociedade, mas não elaborar um guia provisório dentro de um gabinete na Casa Civil, atendendo os interesses da iniciativa privada. Vamos trabalhar no sentido de implementar os pontos bons que existem na Lei 11.455 que não foram até hoje bem implementados, vamos disponibilizar mais recursos para o saneamento básico, vamos qualificar o gasto público, vamos continuar a insistir na necessidade do planejamento na área do saneamento básico, com a elaboração dos planos municipais, avaliados anualmente e revisados a cada quatro. Ainda em 2018, o próprio Plansab será avaliado para fins de revisão. Além disso, a Funasa [Fundação Nacional de Saúde] abriu para consulta pública o Programa Nacional de Saneamento Rural, e é importante que a sociedade brasileira também se pronuncie sobre isso. Essa consulta é extremamente importante, para fazer com que o programa seja concluído e imediatamente implementado em atenção às populações do campo, das florestas e das águas. Devemos caminhar mais nessa direção, e não na direção da MP, que vai trazer diversos entraves jurídicos institucionais. Temos que avançar com o plano que está na lei nacional, aperfeiçoando-a e não a modificando para atender os interesses da iniciativa privada. (fonte: Portal FioCruz)
Diga NÃO à MP do Saneamento: vote na consulta pública do Senado
O Senado Federal abriu Consulta Pública sobre a medida provisória (MP 844/18), a chamada MP do Saneamento, que altera o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento.
Na prática, é a medida prevê a privatização do saneamento.
Vote contra essa medida na Consulta Pública do Senado.
Clique aqui para votar NÃO.
Mãos à obra. Vamos votar NÃO e pedir aos familiares e amigos para votarem NÃO também. Juntos vamos impedir a privatização do saneamento!
Leia a íntegra da MP do Saneamento: MP-844-18 – MP do Saneamento
Não vamos deixar que a MP do Saneamento seja aprovada pelo Congresso.
Vamos à luta contra mais esse retrocesso proposto pelo governo ilegítimo.
Urbanitários em luta: contra à privatização do setor elétrico e do saneamento.
ÁGUA, ENERGIA E SANEAMENTO NÃO SÃO MERCADORIAS!