Militante do MAB avalia que milhões de pessoas serão afetadas pela contaminação com resíduos da mineração
Leonardo Fernandes e Katarine Flor
Daiane Hohn, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), participou do programa No Jardim da Política para avaliar as causas e desdobramentos do rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG).
Nos estúdios da rádio Brasil de Fato, Hohn ressaltou que moradores de diversos outros municípios, além de Brumadinho, serão atingidos, já que a lama tóxica deve atingir outras 19 cidades ao longo do rio Paraopeba e as comunidades banhadas pelo rio São Francisco também podem sofrer com a contaminação.
A entrevistada avalia que a privatização da Vale é um dos principais fatores que explica o rompimento da barragem. “A Vale foi privatizada em 1997, foi entregue para a iniciativa privada que busca o lucro máximo em detrimento do meio ambiente e das pessoas. Se precisar, vai intensificar a exploração do meio ambiente para garantir os lucros”, afirmou Hohn.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Depois do rompimento da barragem em Mariana, a Vale prometeu ao país e ao mundo que aquilo não iria acontecer novamente. No entanto, agora vemos o rompimento da barragem em Brumadinho com mais de 100 pessoas mortas e mais de 200 desaparecidas. Qual sua análise?
Daiane Hohn: Além de todas essas pessoas que já foram identificadas, sabemos que a lista tende a aumentar. O número de desaparecidos, na nossa avaliação, ainda é maior do que este. Muitas famílias não vão conseguir enterrar seus mortos. Além disso, a lama vai passar pelo rio Paraopeba, atingindo mais 19 municípios, e vai chegar até Três Marias, na divisa com a bacia do rio São Francisco.
Essa lama vai impactar ainda aproximadamente um milhão de pessoas em Minas Gerais. Sem falar em 18 milhões de pessoas que moram nos 500 municípios da bacia do rio São Francisco que provavelmente serão contaminados com os resíduos da mineração. A expectativa é que a lama seja contida na barragem de Retiro Baixo, mas a contaminação desse rejeito provavelmente vai atingir mais pessoas. Como o que aconteceu no caso de Mariana: a água contaminada chegou ao Espírito Santo e chegou ao oceano. Nos preocupa a contaminação de toda essa bacia. É um crime grandioso, porque afeta milhões e milhões de pessoas na bacia do rio São Francisco. O Brasil é atingido pelo rompimento da barragem em Brumadinho, não só Minas Gerais.
Você deu a perspectiva do tamanho da tragédia e do número de pessoas que ainda serão atingidas. Sobre a questão da indenização, como foi para os atingidos em Mariana e qual a perspectiva para os atingidos em Brumadinho?
Em Brumadinho, precisamos do afastamento imediato da Vale. Afinal, é a criminosa lidando com o crime. Não podemos deixar que a empresa esteja na cena do crime, porque em Mariana eles cadastraram as pessoas, formularam um acordo, criaram uma fundação para gerenciar recurso, pensaram quais ações reparatórias seriam dadas, de forma individual, de forma isolada – eles e parte do governo, não houve participação popular e os atingidos não participaram em momento algum das decisões sobre os rumos de suas vidas.
Em virtude disso, três anos depois da lama, nós temos Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e várias outras comunidades que ainda não foram reconstruídas. A negação dos direitos continua. Em virtude do que já aconteceu em Mariana, de como a empresa trata os atingidos, nós estamos dizendo: a Vale não pode estar em Brumadinho neste momento, não pode querer assumir a tarefa de cadastrar as pessoas.
Esta semana conseguimos fazer uma reunião, e foi uma vitória dos atingidos de Brumadinho, com o Ministério Público estadual e com a defensoria pública, porque eles [Vale] estavam fazendo cadastro dos atingidos por meio de uma empresa chamada Sinergia. O que os atingidos estão dizendo é que não pode ser feito um cadastro, porque neste momento as pessoas não têm condições emocionais de dizer o que perderam, não conseguem ainda dimensionar. Então, o que conseguimos fazer foi afastar a Vale e a Sinergia deste processo.
Está sendo construído um formulário emergencial para que, minimamente, haja uma lista de quais são as famílias atingidas, porque ainda estamos tentando entender quem são, quantas são, o que tinham. Tudo muito superficial ainda, para que daqui uns dias de fato se possa construir esse cadastro em elaboração coletiva com os atingidos e se identifique o que foram essas perdas, sob vários aspectos, ambiental, social, de renda, enfim. Por isso nós insistimos para que o formulário seja feito por uma empresa pública, que o Estado faça esse cadastramento.
O número de pessoas atingidas pode crescer, certo? As pessoas que vivem ao longo do rio Paraopeba e do rio São Francisco, caso os rejeitos cheguem até lá, também entrariam no cadastro de atingidos?
É neste sentido que buscamos a política nacional dos atingidos por barragens, para ampliar e poder contabilizar tudo o que é levado em consideração quando uma localidade é atingida. Não necessariamente pela lama, mas pela renda, por exemplo. Muitos pescadores na bacia do Rio Doce foram atingidos depois [do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana] e até hoje estão com a renda comprometida. Muitas comunidades indígenas, após a lama passar, sentiram os impactos. Então, comunidades inteiras de ribeirinhos e de pescadores, no Espírito Santo, perceberam o impacto depois de muito tempo. É neste sentido que pensamos a política de atendimento das populações atingidas pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Não pode ser a empresa determinando quem é ou não é atingido.
As reparações ainda estão longe de serem feitas com os atingidos em Mariana e acontece este novo caso em Brumadinho. O que está por trás do rompimento dessas barragens?
Acreditamos que o que está por trás do rompimento da barragem em Mariana e em Brumadinho é a privatização. A Vale foi privatizada em 1997, foi entregue para a iniciativa privada que busca o lucro incessante em detrimento do meio ambiente e das pessoas. Se precisar intensificar a exploração do meio ambiente para garantir os lucros, vai ser feito. O que aconteceu em Brumadinho tem essa causa de fundo, isso aconteceu pelo modelo de privatização da empresa.
A falta de fiscalização dos órgãos competentes – seja a secretaria estadual, seja o governo federal – é consequência deste modelo de mineração. De acordo com o relatório da ANA [Agência Nacional de Águas], existem 24 mil barragens no Brasil e só 3% são fiscalizadas. E mais do que isso, 45 dessas barragens estão com problema, estão em alto risco de rompimento. Brumadinho nem estava nesta lista.
Isso significa que tem uma deficiência nesta lista, não dá para confiar nela. O banco de informações que alimenta a ANA vem das próprias empresas que repassam as informações que lhes interessam. Não são os órgãos públicos que fazem essa fiscalização. Em parte sim, mas quem também acaba fazendo são as próprias empresas.
A população não é avisada do que está acontecendo. Não existe plano de alerta ou de evacuação desta população. Não temos informação atualizada da quantidade de pessoas que vivem em torno destes projetos. Não tem plano de resgate destas vítimas. Temos centenas de mortos e desaparecidos em Brumadinho. Quantos poderiam ser salvos se tivesse um plano de resgate dessas vítimas?
Não tem política de reparação de quem já perdeu. Mariana não tem política de reparação, os atingidos por barragens no Brasil não tem política de reparação, e Brumadinho, infelizmente, vai ser mais um caso. Se a sociedade não cobrar, nós não vamos ter política de reparação aos atingidos e vamos ver recorrentemente o que está acontecendo.
Você falou sobre a questão do lucro das empresas e apontou a privatização como problema. Nós estamos em um momento em que se anuncia uma série de privatizações, com mais empresas privadas cuidando de bens públicos. Como você avalia essas perspectivas de privatização e esses desastres que estão acontecendo?
Essa é uma grande preocupação: como lidar com a ganância das empresas que querem explorar sem cuidar das pessoas e do meio ambiente. É mais barato indenizar as famílias do que reestruturar as instalações das barragens para que se adequem à padrões de segurança atuais. Um grupo dos atingidos esteve com a [procuradora-geral da República] Raquel Dodge cobrando para que mudanças estruturais sejam feitas diante do que aconteceu em Brumadinho. Uma das questões que se apresentava para Dodge é a mudança do modelo de mineração.
Não pode continuar do jeito que está. Essa tecnologia está obsoleta e precisamos desativar as barragens que estão à montante de populações. Por outro lado, a Vale tem que ser responsabilizada. O Estado não tem que puxar para si uma responsabilidade que não é sua, é uma responsabilidade exclusiva da Vale. A Vale tem que reparar os atingidos. Que essa mediação seja feita e que os atingidos e a sociedade civil estejam acompanhando as decisões permanentemente. A participação dos atingidos em todo o processo e a sociedade junto, definindo essas grandes políticas, é fundamental para evitar a repetição de crimes desta natureza.
Quais as consequências dessa lama tóxica para a saúde da população de Mariana e também, agora, para a população de Brumadinho?
Vemos com muita preocupação a questão da saúde dos atingidos de Brumadinho e dos municípios da bacia do rio São Francisco em virtude do que aconteceu em Mariana. O que temos visto é que a empresa se nega a reconhecer que casos de saúde, de alergia, de problemas estomacais e problemas emocionais, como depressão, sejam causados pelo rompimento da barragem em Mariana.
Inclusive foi feita uma pesquisa no ano passado, ainda com pequena amostra em Mariana, que revelou altos índices de lama no organismo das pessoas, até nas crianças. Algumas dessas pessoas vieram até São Paulo para fazer exames e diagnosticar que tipos de elementos químicos constam em seu corpo. Mas a empresa se negou o tempo todo a pagar os custos desses exames e, inclusive, disse que não era verdade que o que estava sendo levantado pelos profissionais da Rede de Médicas e Médicos Populares, que acompanharam o caso, e dos médicos que estavam atendendo.
Estamos preocupados com o que vai acontecer na vida dos atingidos pela contaminação da água, dos resíduos, da lama, dos alimentos, dos peixes, enfim, é uma série e vasta possibilidade de contaminação que está colocada hoje para o Brasil. São Paulo, por exemplo, é alimentado pelas frutas e pelo pescado do rio São Francisco. Quem está em São Paulo também é atingido pelo rompimento da barragem em Brumadinho. A população brasileira é atingida por mais este crime e temos que responsabilizar os acionistas e a empresa para que isto não volte a acontecer.
Como você avalia essa disputa de narrativa com a Vale querendo emplacar que foi um “acidente” e falando em “doações” para as famílias atingidas?
A Vale está preocupada com sua reputação pública, sua imagem diante dos investidores, por isso vai dizer que foi acidente e não vai se responsabilizar. A tarefa da sociedade brasileira é a reafirmação que isso tem sim um responsável: é a empresa Vale. É nessa perspectiva que a sociedade precisa cobrar do Estado por leis que tragam justiça e cuidem do meio ambiente e das pessoas.
Estamos construindo uma rede de solidariedade em Brumadinho com distintas organizações que estão ajudando as famílias neste momento difícil. Desde a busca dos corpos, a identificação, o apoio psicossocial das famílias que estão fortemente abaladas, garantindo que possam participar para poder escolher e definir os rumos do seu futuro e das próximas gerações. Por isso, o Movimento dos Atingidos por Barragens está lá, mas contamos com uma rede enorme de solidariedade e precisamos continuar contando. Já temos uma imensidão de pessoas e organizações que se colocam à disposição para contribuir de diversas formas em Brumadinho e vamos precisar por um longo período. O que aconteceu em Mariana nos dá esse legado: três anos de luta, de lama e de impunidade.
No decorrer dos dias, a tendência é que a sociedade esqueça o que está acontecendo e por isso precisamos estar juntos, construindo essa rede de solidariedade, para cobrar dos responsáveis, para evitar novos crimes desta natureza que tendem a acontecer se não mudar a forma como é aplicada a mineração e as barragens no Brasil.
Edição: Júlia Rohden/ Rede Brasil Atual