por Anderson Kazuo Nakano[1]
No Brasil, quando acontece alguma tragédia impactante que mobiliza todos os meios de comunicação e comove a opinião pública nacional e internacional, é comum ouvir a frase “é uma tragédia anunciada”! Uma vez ocorrida a tragédia, essa frase passa a ser repetida e propagada tanto nas denúncias quanto nas matérias e noticiários elaborados pelos profissionais do jornalismo, bem como nos comentários de especialistas convocados para dar as suas declarações que são inseridas em reportagens transmitidas pelos jornais, rádios, computadores, telefones celulares e televisões.
Isso ocorre em praticamente todos os verões, com suas temporadas de intensas pancadas de chuvas, como aquele verão fatídico de 2011 que arrasou bairros inteiros de diferentes cidades da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Nessas temporadas, as tragédias anunciadas são os deslizamentos de terras, rochas e vegetações das encostas de morros que arrastam casas, móveis e pessoas de baixa renda levadas pela desigualdade e injustiça social a viver em áreas de risco que estão previamente mapeadas e são bastante conhecidas pelos técnicos e autoridades dos governos locais.
As recorrências anuais daqueles deslizamentos não causam mais nenhuma surpresa nas pessoas e mostram a inexistência total de medidas, práticas e culturas preventivas que são solenemente ignoradas diante dos inegáveis riscos de perdas materiais e de vidas humanas que acabam soterradas em meio aos entulhos. Nota-se esse mesmo desprezo e ignorância em relação à prevenção também nas áreas urbanas inundáveis mapeadas e conhecidas, como as da cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo que se encontram atualmente impactadas pelos transbordamentos de rios e córregos e pelos acúmulos de águas das chuvas ocorridas dias atrás.
As tragédias anunciadas ganham notoriedade também nos casos de incêndios que ocorrem recorrentemente nas favelas das grandes cidades, sempre com a gritante falta de informações e explicações a respeito das suas causas. No primeiro semestre de 2018, com o incêndio e desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida que se localizava no centro de São Paulo, teve-se mais um exemplo de tragédia anunciada que quase se repetiu na chamada ocupação Prestes Maia, também localizada no centro paulistano. Se a tragédia anunciada não se repetiu nesse prédio ocupado precariamente por membros de movimentos de luta por moradia, ocorreu dias atrás no Centro de Treinamento do Flamengo no Rio de Janeiro.
Com os rompimentos recentes da barragem do Fundão da SAMARCO/Vale/BHP Billiton, em 2015, e da barragem do Córrego do Feijão da Vale, em 2019, ambas no estado de Minas Gerais, voltamos a ouvir aquela frase trágica que evidencia, no Brasil, a falta de prevenção frente a evidências e avisos prévios das tragédias anunciadas emitidos por vozes técnicas e políticas que alertam insistentemente para perigos iminentes. Não será nenhuma surpresa se a classificação como tragédia anunciada retornar, no futuro, para se referir a algum caso de desabamento de alguma ponte ou algum viaduto da cidade de São Paulo que já estão emitindo sinais claros de desgastes estruturais e de rompimento iminente detectados em avaliações técnicas registrados em laudos amplamente divulgados.
Por que não aprendemos com o rompimento da barragem da SAMARCO/Vale/BHP Billiton em Mariana e não adotamos medidas preventivas para evitar o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho?
Segundo reportagem de Fred Melo Paiva e Rodrigo Martins publicada na Revista Carta Capital, após o crime da SAMARCO/Vale/BHP Billiton, “No fim de 2015, imediatamente depois do crime da Samarco em Mariana, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais criou uma comissão para estudar e propor medidas de monitoramento da mineração no estado, o que resultou em três projetos de lei. Apenas um foi aprovado. Os outros dois tramitam a passos de tartaruga, justamente os que endurecem as regras de segurança das barragens, criam políticas públicas para proteger os atingidos pelos colapsos e vetam a construção dessas estruturas através do método de ‘alteamento a montante’ – o mais barato e perigoso” (Carta Capital, Ano XXIV, nº 1040, 6 de fevereiro de 2019, p. 20-21).
Ainda de acordo com a reportagem citada, em Brasília foi instalada uma Comissão Externa na Câmara dos Deputados cujos 16 membros propuseram três projetos de lei. “Um deles aumenta em até 100 vezes as multas para crimes ambientais. O outro equipara os rejeitos da mineração àqueles tratados de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Um terceiro torna obrigatório o Plano de Ação de Emergência”. Segundo aqueles jornalistas, “Nenhum saiu do papel”. As propostas apresentadas no Senado Federal para endurecer a Política Nacional de Segurança das Barragens tiveram as gavetas e as prateleiras como destino certo e líquido (Carta Capital, Ano XXIV, nº 1040, 6 de fevereiro de 2019, p. 22).
Aqueles fatos mostram com contundência que, no Brasil, recusamos gerir as causas das tragédias e preferimos gerir as consequências dessas tragédias. Essa inversão antiética prioriza os lucros econômicos em detrimento de vidas humanas, dos ecossistemas e das biodiversidades.
No caso do rompimento da barragem do Córrego do Feijão da Vale, a recusa em relação à gestão preventiva das causas dessa tragédia anunciada reflete o desprezo que a lógica corporativa-empresarial, dominada pela lógica globalizada das finanças, tem pelas vidas humanas e pelo meio ambiente locais. Esse desprezo contrasta com a prioridade dada aos esforços voltados para a redução dos custos de produção e para a obtenção de lucros e ganhos financeiros.
Na carta divulgada pelo Movimento Águas e Serras de Casa Branca (“Nossa Terra Sangra, Nosso Povo Chora, Nossa Luta Continua”), surgido em 2010, “na comunidade de Jangada, vizinha do complexo minerário Paraopebas e do Córrego do Feijão”, mostra com clareza cristalina o desprezo pela gestão preventiva e participativa na eliminação e redução das causas de tragédias anunciadas. Esse desprezo aparece na desonestidade e na recusa da Vale em dialogar com a sociedade civil que vive nas áreas impactadas por suas atividades. Naquela carta lê-se que o Movimento Águas e Serras de Casa Branca exigiu, “na ocasião da votação da renovação da licença de operação da mina de Córrego do Feijão, que a companhia se relacionasse com a população diretamente atingida para informar suas atividades e pretensões no território e considerar a opinião dos moradores a respeito”.
Aquela exigência deu origem ao “Fórum de Relacionamento com as Comunidades da Jangada/Casa Branca e Córrego do Feijão”. Depois de “um ano e maio de reuniões bimestrais nas dependências da Vale S.A.”, os membros do Movimento abandonaram “o espaço devido às regras e métodos definidos pela empresa, à omissão e à manipulação de informações”. Segundo a carta, os membros daquele Movimento não podiam “fotografar, filmar e (…) ter acesso às apresentações ali realizadas pelo corpo técnico da mineradora. Além disso, as atas não refletiam tudo o que havia sido debatido”. Os membros do Movimento Águas e Serras de Casa Branca chegaram a levar, sem sucesso, suas denúncias para assembleias anuais de acionistas da Vale realizadas no Rio de Janeiro.
Além de “enrolar” os membros da sociedade civil organizada preocupados com sua segurança e com o futuro dos seus territórios, a Vale também atua junto a diferentes órgãos e instâncias governamentais a fim de evitar a adoção de medidas preventivas capazes de evitar as causas de tragédias anunciadas provocadas por suas atividades, visando obter vantagens indevidas. É de conhecimento público o trânsito de pessoas entre cargos de direção na Vale e em órgãos governamentais responsáveis pela regulação das atividades da mineração. Essas pessoas atuam e influenciam a elaboração, instituição e implementação das normas que regulam as atividades da mineração no país, bem como os aparatos e procedimentos de fiscalização na aplicação dessas normas. Além da “porta giratória” entre a Vale e diferentes instâncias governamentais, há lobbies constantes em favor dos interesses privados dessa empresa.
Ainda em relação ao mesmo crime presente no rompimento da barragem do Córrego do Feijão da Vale, a preferência pela gestão das consequências dessa tragédia anunciada (em detrimento da prevenção das suas causas), além de refletir aquele desprezo pelas vidas humanas e pelo meio ambiente mencionado no parágrafo anterior, reflete também a injustiça presente na disseminação dos riscos e perigos gerados pela busca gananciosa por lucros e ganhos financeiros destinados aos executivos e acionistas da Vale. Trata-se de uma injustiça porque, após a ocorrência da tragédia anunciada, as vítimas acabam lidando individualmente com boa parte das consequências, muitas vezes por conta própria, com o auxílio inexistente e insuficiente tanto da Vale quanto do poder público.
A preferência pela gestão emergencial das consequências da tragédia anunciada reflete também a certeza de impunidade dos responsáveis da Vale e do governo por aquela tragédia, bem como a garantia de redução e minimização das perdas e prejuízos provocados pelo pagamento de multas, indenizações e pela realização de ações compensatórias relativas às consequências dessa tragédia.
As “Observações Preliminares da Missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho”, realizada entre 29 de janeiro e 5 de fevereiro de 2019, mostram a veracidade dessas afirmações. Essa Articulação reúne, desde 2009, grupos do “Brasil, Argentina, Chile, Peru, Canadá, Moçambique, com o objetivo central de contribuir no fortalecimento das comunidades em rede, promovendo estratégias de enfrentamento aos danos ambientais e às violações de direitos humanos relacionados à indústria extrativa da mineração, sobretudo decorrentes da atuação da Vale em diversos Estados do Brasil e em outras partes do mundo”. O Movimento Águas e Serras de Casa Branca mencionado antes participa daquela Articulação.
Após a ocorrência da tragédia anunciada, aquelas “Observações Preliminares da Missão da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale em Brumadinho” denunciam o controle e manipulação da Vale sobre as informações, os canais de informações, os postos de atendimento, os movimentos sociais, as associações comunitárias, os meios de comunicação, equipes de atendimento de órgãos públicos, voluntários, demandas sociais, dentre outros elementos. Denunciam também a desassistência por parte da Vale em relação às condições de alojamento e de moradia das vítimas atingidas pela tragédia anunciada, bem como a falta de transparência em relação a planos emergenciais e laudos técnicos. As Observações Preliminares também levantam suspeição em relação às doações em dinheiro para as famílias. Essas doações foram feitas pela Vale mediante assinatura de um suspeito termo de doação que não foi disponibilizado publicamente.
Essas denúncias e suspeições dão motivos para preocupações e suspeitas em relação às responsabilizações criminais que devem recair com a carga devida sobre a Vale e autoridades públicas culpadas pelos crimes envolvidos na tragédia anunciada. Tais preocupações e suspeitas se estendem para possíveis injustiças socioambientais no pagamento de multas, indenizações e realização de ações compensatórias. Essas suspeitas não são nem um pouco infundadas se pensarmos na maneira como foram tratadas as consequências socioambientais do rompimento recente da barragem do Fundão da SAMARCO/Vale/BHP Billiton.
Um país de tragédias anunciadas não é somente o país que despreza e ignora a prevenção. É também o país que não aprende com as tragédias ocorridas ao longo de sua história e, por isso mesmo, é um país que está condenado a repetir eternamente tais tragédias. Isso vale também para as tragédias eleitorais.
[1] Professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (IC-Unifesp).