A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) entende que o texto aprovado no Senado traz contribuições para o setor, mas deixa a desejar com relação a “mudanças necessárias para um salto estrutural de investimento e eficiência”.
A proposta de um novo marco legal para o saneamento básico chegou à Câmara dos Deputados com o ‘mérito’ de desagradar tanto seus críticos, quanto seus defensores. Isso porque os governadores obtiveram uma vitória importante no último lance da disputa, assegurando a renovação dos contratos já firmados entre companhias estaduais de saneamento e municípios, que são os entes titulares da prestação destes serviços. A mudança desagradou o setor privado, que defende a abertura total do saneamento básicoao mercado. Ambos se preparam para influenciar deputados federais. Mas para entender o que está em jogo, é preciso recuperar parte do histórico dessa discussão.
O novo marco legal chegou ao Congresso pelas mãos do ex-presidente Michel Temer, a partir da medida provisória 844 publicada no diário oficial no dia 9 de julho de 2018. Toda MP precisa ser votada pelo Congresso ou caduca. Esse foi o fim da 844, que perdeu validade em novembro daquele ano. Mas Temer não desistiu: apresentou outra MP, a 868, no apagar das luzes de seu governo, em 28 de dezembro de 2018. E, de novo, o objetivo de votar antes que a MP expirasse não foi atingido: a MP 868 morreu na praia no dia 4 de junho.
Quem critica a proposta, contudo, não pôde nem recuperar o fôlego. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), relator da MP 868, conseguiu, em menos de 48 horas, colocar em votação outra proposta, primeiro na Comissão de Serviços e Infraestrutura, depois no plenário da Casa.
O projeto de lei (PL) 3.261, de autoria do próprio Tasso, de início tinha praticamente o mesmo teor da medida provisória. Mas seu relator, o senador Roberto Rocha (PSDB-MA), incorporou algumas mudanças. A principal delas foi uma emenda apresentada pelo porta-voz da oposição, o senador Jacques Wagner (PT-BA) que, por sua vez, costurou a proposta junto à parte dos insatisfeitos.
No fim de maio, 24 governadores assinaram uma carta em que protestavam contra a antiga MP (Minas Gerais e Rio Grande do Sul foram os únicos que não subscreveram). Os gestores argumentavam que o novo marco legal representaria um retrocesso ao enfraquecer a participação dos estados na gestão dos serviços.
Atualmente, os municípios podem conceder a prestação do saneamento básico a empresas públicas ou companhias de economia mista sem necessidade de fazer licitação. Esse dispositivo está na Constituição de 1988, chama-se ‘contrato de programa público’, e facilita a colaboração entre entes da federação. Tanto as MPs, quanto o PL tentam mudar esse desenho, determinando a “livre concorrência” entre empresas públicas e privadas. E fazem isso obrigando os gestores municipais a abrirem licitação.
A vitória parcial, na visão dos governadores e dos críticos à proposta do novo marco legal, veio a partir da inclusão de uma emenda que permite que os contratos já firmados sejam renovados mais uma vez, com duração de até 30 anos. Apesar de preservar, por esse período, o papel dos estados na prestação do saneamento, a emenda não soluciona de vez o problema na avaliação de Abelardo de Oliveira Filho, conselheiro da Empresa Baiana de Água e Saneamento (Embasa) e também do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas). A pedido de alguns deputados federais da oposição, Abelardo elaborou um estudo com propostas de emendas ao PL 3.261. Ele sugere suprimir o dispositivo que veda a prestação por contrato de programa público, garantido pelo artigo 175 da Constituição, por “forçar a implantação de uma nova estrutura que fere diretamente a autonomia dos entes federados e privatiza completamente o setor”.
Presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento(Aesbe), Roberto Tavares critica a forma como o governo Temer conduziu todo o processo de proposição do novo marco legal. “O governo anterior não quis diálogo para construir uma alternativa para o setor. Temos que encontrar meios de fortalecer as companhias estaduais e trazer o setor privado para somar, fazer parcerias, e não destruir. Não se pode oferecer o filé para o privado e deixar o osso com as estatais. O setor público tem que ser o fio condutor e definidor da estratégia de investimento em saneamento básico brasileiro”, defende, expressando a preocupação de que a iniciativa privada atue apenas nas cidades que geram lucros, deixando todas as outras que dão prejuízo para o poder público. Isso porque as companhias estaduais trabalham com base no princípio do subsídio cruzado, quando o lucro gerado pelas tarifas cobradas em alguns municípios compensa o prejuízo da prestação do serviço, caso da maioria das cidades.
Críticas também do setor privado
A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) entende que o texto aprovado no Senado traz contribuições para o setor, mas deixa a desejar com relação a “mudanças necessárias para um salto estrutural de investimento e eficiência”.
Para Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon, é preciso mudar a emenda que permite que os contratos de programa em andamento sejam renovados por mais um período. Segundo ele, a resistência “dos defensores do setor público” se deve “à falta de entendimento” de que a abertura do mercado não vai necessariamente acabar com as empresas estatais de saneamento.
“O modelo atual não deu certo e esse corporativismo dos setores públicos é típico de quem não quer sair da zona de conforto. Empresas públicas que já atuam há muitos anos no mercado e têm o conhecimento do sistema podem mostrar propostas melhores numa licitação e levar vantagens sobre uma empresa privada. O grande desafio é ter recursos para garantir os investimentos necessários para se levar saneamento para quem não tem e oferecer serviços de qualidade”, argumenta. Para o diretor-executivo da Abcon é preciso “abrir a reserva de mercado, estimular a concorrência e exigir que as empresas contratadas entreguem o serviço prometido”.
Percy Neto torce apenas para que o PL 3.261 não fique parado na Câmara dos Deputados. “Nosso maior temor é irmos para o fundo da fila. São tantas prioridades aparecendo o tempo todo que é impossível não ter receio de uma estagnação do processo. Vamos continuar o esforço para manter o tema na agenda”, avisa.
Segundo a assessoria de imprensa da Câmara, até o fechamento desta reportagem o projeto de lei ainda aguardava distribuição para as comissões temáticas.
Outra preocupação
Mas o PL não se limita a propor mudanças na organização da prestação dos serviços de saneamento básico, mas também transforma a regulação do setor. O PL amplia as competências da Agência Nacional de Águas (ANA) que, além de continuar responsável pelo gerenciamento dos recursos hídricos, passa também a regular a prestação dos serviços públicos de saneamento básico. A ANA teria autonomia para definir diretrizes para o setor, estabelecer normas, estimular a livre concorrência e fiscalizar a eficiência das empresas prestadoras de serviço.
Malu Rodrigues, coordenadora do Programa Água da ONG SOS Mata Atlântica, participou de inúmeros debates públicos nas discussões desde a MP até o texto final do projeto de lei e avalia que há um possível conflito de interesses no fato de a ANA somar tantas atribuições à competência original da agência, de conceder e monitorar a concessão de outorgas para uso de água. “A agência vai perder a isonomia e sua independência na análise dos usos das águas”, entende ela, que também sugere uma mudança estratégica: que a ANA não seja ligada ao Ministério do Desenvolvimento, mas sim à pasta do Meio Ambiente. “Esse quadro acena com uma visão meramente utilitarista da água. Não podemos perder de vista que o acesso ao saneamento básico é um direito humano e ecossistêmico. O órgão regulador tem que tratar também de saneamento ambiental”, alerta.
O PL aprovado pelos senadores estende o prazo para municípios substituírem lixões por aterros sanitários de 2024 para 2025. A coleta de lixo atualmente é responsabilidade dos municípios, e apenas 39,8% possuem aterro sanitário – o restante ainda tem lixões, que oferecem grande risco ao meio ambiente e à saúde da população. Inicialmente, os aterros deveriam ter sido instalados em todas as cidades até 2014. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe), em 2017, 3,3 mil cidades depositavam resíduos em locais inadequados, o que prejudica a vida de quase 77 milhões de brasileiros.
As datas, sugeridas pelo PL variam de acordo com o tamanho da cidade para implementação do aterro: até 2 de agosto de 2021 para capitais de estados e municípios integrantes de região metropolitana ou de região integrada de desenvolvimento de capitais; até agosto de 2022 para cidades com mais de cem mil habitantes; até agosto de 2023 para municípios com população entre 50 e cem mil habitantes; até agosto de 2024 para cidades com menos de 50 mil habitantes.
Fonte: A reportagem é de Martha Esteves, publicada por EPSJV/Fiocruz.