Em reportagem publicada na revista CartaCapital, publicada nesta quinta-feira (12/9), o assessor de saneamento da FNU- Federação Nacional dos Urbanitários, Edson Aparecido da Silva, considera um equívoco responsabilizar a Lei Nacional do Saneamento pela falta de universalização e argumenta que, na lógica do lucro, não há garantias de que áreas mais pobres, como as rurais, sejam de fato atendidas.
Leia a reportagem:
Em tramitação na Câmara dos Deputados, novo marco regulatório quer abrir gestão de companhias estatais para investidores
Dentre os 71 milhões de domicílios que existem no Brasil, 47,1 milhões possuem escoamento do esgoto. Ou seja, quase 24 milhões de casas não possuem o serviço. Para 12 milhões de residências falta coleta de lixo e, em 10 milhões, não há distribuição de água. As informações são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD), divulgada em 2018.
Diante do panorama excludente do saneamento básico, o Congresso Nacional aposta em colocar a solução dos problemas nas mãos dos empresários. Em 21 de agosto, a Câmara dos Deputados inaugurou uma comissão especial para discutir o novo marco regulatório do saneamento, que altera lei sobre o tema, em vigor desde 2007. Hoje, o serviço de tratamento de água, esgoto e coleta de lixo é oferecido majoritariamente por companhias estatais. A ideia é abrir caminho para a exploração dessas atividades pela iniciativa privada.
Segundo o relator da proposta na Câmara, o deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP), a meta é ter o projeto finalizado na primeira quinzena de outubro. A matéria precisa ser aprovada em plenário. O parlamentar trabalha com o texto já apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
A entrega ao setor privado, porém, já está em curso no País. Em 2018, o então presidente Michel Temer (MDB) lançou medida provisória com teor semelhante, mas caducou. Foi na gestão dele que se deu andamento à privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos no Rio de Janeiro (Cedae), gigante do saneamento no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o governo de João Doria (PSDB) apontou para 2020 como o ano da privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado (Sabesp). O governo mineiro, de Romeu Zema (Novo), também quer apresentar proposta de privatização da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) como projeto para o ano que vem.
No Rio Grande do Sul, de Eduardo Leite (PSDB), a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) anunciou edital com a maior parceria público-privada (PPP) da história do estado. A empresa vencedora deve receber 9,5 bilhões de reais de pagamento da Corsan, ao longo de 35 anos de contrato. No Rio Grande do Norte, também há previsão de abertura do capital privado da Companhia de Águas e Esgotos (Caern), conforme declaração da governadora Fátima Bezerra (PT) a CartaCapital: “Não vamos privatizar a nossa companhia de águas, no entanto, está em estudo uma parceria público-privada que abriria a capitalização da Caern, mas sem o estado perder o controle acionário”.
Ideia sobre eficiência do setor privado é falácia, diz Federação
A Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), que reúne 41 entidades no ramo de saneamento, meio ambiente, gás e energia, é contrária ao projeto em tramitação na Câmara. A organização defende, em primeiro lugar, que a política macroeconômica do Estado favoreça investimentos em empresas públicas, estratégia enfraquecida após o congelamento de gastos imposto pela aprovação da Emenda à Constituição nº 95. A FNU também pede a retomada do Conselho Nacional das Cidades, extinto pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) em decreto de abril. Outra proposta é reverter impostos de PIS/Cofins para um fundo nacional de universalização do saneamento.
Entrevistado por CartaCapital, o assessor de saneamento da Federação e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, Edson Aparecido, considera um equívoco responsabilizar a Lei Nacional do Saneamento pela falta de universalização e argumenta que, na lógica do lucro, não há garantias de que áreas mais pobres, como as rurais, sejam de fato atendidas.
Na avaliação do especialista, também secretário executivo no Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), o setor privado diz que vai resolver o problema dos investimentos, mas, na verdade, vai buscar recursos na Caixa Econômica Federal e no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os fundos oriundos genuinamente das empresas serão pequenos, ele considera.O movimento de privatizações de empresas de saneamento já data dos anos 1990, explica Aparecido.O especialista cita o caso da empresa Águas de Manaus, na capital do estado do Amazonas, privatizada nos anos 2000. Um ranking divulgado este ano pelo Instituto Trata Brasil coloca o município como o terceiro pior entre as 100 maiores cidades brasileiras. Segundo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, a tarifa aumentou e o tratamento de esgoto cobre somente 10% das moradias. O Estado, então, voltou a colocar recursos para que não haja colapso no atendimento.
“Manaus é um bom exemplo de que é uma falácia essa ideia de que o setor privado é mais eficiente que o setor público. Você ainda tem 600 mil pessoas na capital sem água. O setor privado coleta apenas 30% dos esgotos e só 10% recebem algum tipo de tratamento”, argumenta. “O setor privado sempre esteve presente na atuação do saneamento, seja nas obras, na elaboração de projetos. O que eles querem agora é controlar a gestão das empresas, o setor comercial, de contratações, cuidar da gestão como um todo.”
Projeto não estimulará investimentos, afirma especialista
Engenheiro civil, ex-secretário de Saneamento do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, Abelardo de Oliveira Filho também criticou o projeto, em audiência pública realizada na Câmara, em 3 de setembro. Ele cita o estudo do Instituto Transnacional (TNI), que aponta a tendência mundial de reestatização de serviços públicos de fornecimento de água e esgoto.
Referenciado também pelo relator Organização das Nações Unidas (ONU), o brasileiro Leo Heller, o levantamento aponta que, nas últimas duas décadas, houve ao menos 180 casos de reestatização do fornecimento de água e esgoto em 35 países, como França, Alemanha, Argentina, Bolívia e Moçambique. O fracasso internacional da entrega do saneamento ao setor privado se deu principalmente por falhas das empresas em atingir metas de universalização, problemas com transparência e dificuldade de monitoramento do serviço pelo setor público.
“O projeto não vai resolver os problemas de saneamento básico no País, ao contrário, vai desestruturar completamente o setor, destruindo tudo o que foi conquistado nos últimos 15 anos”, afirma Oliveira Filho. “Destrói as empresas públicas estaduais de saneamento básico e institucionaliza o monopólio privado do setor na prestação dos serviços públicos. Não vai estimular os investimentos, ao contrário, levará à precarização na maior parte dos municípios. A expectativa de aportes elevadíssimos de recursos privados carece de sustentação em fatos e dados.”
Para deputado do PSOL, proposta é “mentirosa”
Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), a proposta na Câmara é “mentirosa”. O parlamentar é um dos 28 titulares que compõem a comissão especial. Braga afirma que um dos piores impactos do novo marco regulatório será o aumento nas contas de água. Ele cita o caso de sua cidade natal, Nova Friburgo, que teve a sua companhia de água privatizada e, segundo o parlamentar, resultou no aumento das tarifas. Ele diz que acredita nas condições de barrar o projeto, pela mobilização popular.
“As empresas privadas avaliam o bem água como uma mercadoria que precisa ser explorada. A partir dessa avaliação, elas visam maximizar seus lucros e não dar atendimento a regiões remotas onde investimentos maiores precisariam ser realizados”, diz. “A proposta dele [do relator Geninho Zuliani] é mentirosa, você não vai ter ampliação significativa do investimento em regiões remotas porque esse não vai ser interesse das empresas. Primeiro, porque elas não vão querer ampliar a realização de investimentos. Segundo, que ela não quer fazer em áreas remotas porque depois elas terão que dar manutenção ao investimento realizado.”
Procurada, a empresa Águas de Nova Friburgo afirma que o reajuste tarifário está previsto no contrato de concessão firmado em 2009. Segundo a companhia, “o reajuste é baseado em uma fórmula paramétrica, que reflete as variações dos principais insumos da concessionária, como a tarifa de energia elétrica, por exemplo, que subiu, em 2019, cerca de 10%”. A empresa afirma que, antigamente, a cidade não contava com coleta e tratamento de esgoto. Hoje, diz nota, 99% da população tem água tratada e 95%, esgoto tratado.
No entanto, em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) recebeu uma série de denúncias sobre irregularidades na coleta de esgoto pela empresa. De acordo com as denúncias, disse a Alerj, a companhia usaria a rede pluvial no lugar de uma rede específica. Segundo a Comissão de Defesa do Meio Ambiente (CDMA) da Casa, a utilização da rede pluvial é um grave descumprimento do contrato de concessão. A Alerj e a Câmara Municipal de Nova Friburgo foram questionadas sobre a resolução dos casos, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Relator: declaração de Braga é “irresponsável”
Ouvido por CartaCapital, o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), relator do projeto, classificou a avaliação de Glauber Braga como “precoce e irresponsável”.
“Eu não sei de onde que o deputado tirou essas informações, é muito precoce e irresponsável a declaração de que vai haver aumento. Porque, no fundo, as agências reguladoras funcionam para isso. A taxa de água e esgoto tem que ser justa e módica. Então, afirmar isso, nessa altura do campeonato, sem o relatório pronto, é, no mínimo, irresponsável”, diz Zuliani. “A situação que está, com 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto, talvez não preocupe a ele, mas preocupa muito a mim.”
Segundo o parlamentar, a classificação do sistema tarifário é um dos pontos mais controversos, pois há casas que não têm hidrômetro e, portanto, municípios que não têm como medir o consumo acabam aplicando taxas mínimas ou dispensando a cobrança. Ele pediu um levantamento a entidades para investigar esses casos. Zuliani argumenta que, para universalizar o saneamento básico, é preciso investir 600 bilhões de reais. A ideia é basear o projeto em três pilares: investimento, concorrência e regulação.
“Esse dinheiro todo que nós precisamos só pode vir do mercado financeiro, do setor privado, de financiamentos, isso é um fato. Sobre a concorrência, é ela que traz o melhor preço, a qualidade e a eficiência. E no caso da regulação, não existe bom contrato de concessão, nem de programa, nem de terceirização ou PPP, se não tiver uma agência reguladora que vai fiscalizar os contratos e tomar decisões sobre a questão tarifária.”
Fonte: CartaCapital