Recentemente, para defender a privatização da Eletrobras, o secretário especial de Desestatização, Salim Mattar, afirmou que “a empresa só tem capacidade de investir 3 bi ou 4 bi de reais ao ano” e que por isso a estatal “vai diminuir o market share se não houver investimento anual de 15 bilhões de reais”. Uma informação errada que cai como uma luva para o discurso de privatização.
A Eletrobras tem capacidade de investimento suficiente para manter seu market share. Além disso, a afirmação de que é fundamental para o país que a Eletrobras continue a ser a principal investidora do setor, já majoritariamente privado, abre uma contradição no discurso governista, pois revela o caráter dos agentes privados, de baixo apetite para investimentos, especialmente os de grande porte.
Se as empresas privadas não demonstram disposição para investir, privatizar a Eletrobras só agravará o problema. O que o secretário não fala é que, se a Eletrobras for privatizada, o preço da energia elétrica sofrerá um grande aumento.
De janeiro a setembro de 2019 a Eletrobras teve um lucro de 7,6 bilhões de reais. Em 2018, apresentou lucro de 13,3 bilhões. São 20,9 bilhões em menos de 2 anos. E, para além da lucratividade, a Eletrobras tem demonstrado capacidade de investimento muito maior do que 3 bi/ano. Isso fica claro quando observamos o indicador de geração de caixa (LAJIDA), de 12 bilhões/ano.
Esse indicador, geralmente usado para medir a capacidade de investimento, revela que a empresa tem condições de ampliar fortemente seus investimentos além do atual patamar. Reforça esse argumento a queda do indicador de endividamento (alavancagem) da empresa (Dívida Líquida/LAJIDA), hoje em 1,8x. No setor elétrico, as empresas costumam atuar com maior alavancagem e a média para esse indicador nas empresas privadas está entre 3x e 5x, ou seja, bem mais endividadas.
Fora isso, a recente entrada em operação de grandes usinas também deve liberar a Eletrobras de compromissos com a garantia de projetos, ampliando sua capacidade de endividamento. A sólida posição de caixa (9,6 bi), mais 15 bi de recebíveis de empréstimos concedidos e outros recebíveis de 36 bilhões (RBSE) são mais elementos que se contrapõem àqueles que apontam o tamanho da dívida da empresa como impeditivo para realizar investimentos. Estudos demonstram que a estatal tem capacidade para investir algo em torno de 10 bi/ano.
O governo federal afirma que a manutenção da participação no mercado (market share) depende de investimentos da ordem de 15 bilhões. Mais uma vez, se equivoca. Para calcular a necessidade de investimentos é preciso, antes, lembrar que nenhuma empresa entra em um novo projeto só com capital próprio. A forma de financiamento depende de sua estrutura de capital. Nos projetos financiados pelo BNDES, a proporção mais usual é 30% de capital próprio (equity) e 70% de capital de terceiros (dívida).
Segundo o Plano decenal de Expansão de Energia (PDE) 2029, recentemente divulgado pela EPE, serão necessários, nos próximos 10 anos, investimentos de 239 bi na geração e de R$103 bi em transmissão. Desse modo, o recurso total necessário, em média, para manter 30% de participação na geração é de 7,2 bi/ano e, para manter 45% de participação na transmissão, de 4,9 bi/ano. Somando os dois, chega-se a 11,9 bi/ano. É preciso levar em conta ainda que, historicamente, a EPE tem superestimado de forma recorrente em suas projeções o crescimento do país e dos investimentos no setor elétrico.
Considerando, de forma conservadora, 50% de capital próprio e 50% de dívida, a Eletrobras precisaria de R$6 bi/ano de capital próprio para manter sua participação de mercado. Assim, é possível afirmar que a Eletrobras tem capacidade para investir 10 bi/ano, o que é mais do que suficiente para manter sua participação no mercado, conservando um baixo nível de endividamento.
Desta forma, fica claro que a falta de investimentos não é consequência da situação econômico-financeira da empresa. O baixíssimo nível de investimentos é um projeto de curto prazo cujos resultados são conhecidos, pelo menos, desde o apagão de 2001. Pretende-se, com isso, sugar até o último recurso da Eletrobras para pagar dividendos, deixando como legado uma empresa esvaziada de seu sentido e de sua história. Foi assim com a Light, a Oi e a Vale.
O objetivo é descaracterizar a Eletrobras para vendê-la. E a privatização servirá para reforçar a política de priorização do pagamento de dividendos, reduzindo cada vez mais investimentos e pesquisas e transformando a estatal em mero instrumento de extração de lucros.
Não bastasse isso, o governo vem fazendo um esforço hercúleo para tentar acusar a Eletrobras e suas usinas que atuam no regime de cotas pelos altos preços da energia. Mais uma vez, contraria dados oficiais que mostram que as cotas têm impacto positivo no preço final da energia elétrica. E é difícil brigar com os números.
De forma simplificada, o repasse do custo da energia elétrica não gerada pelas usinas (GSF) para as tarifas – sejam do sistema de cotas ou não – é de responsabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN), e não das usinas individualmente. Isso porque não cabe aos administradores das usinas a decisão de quanta energia sua usina vai gerar. Essa decisão é do Operador Nacional do Sistema (ONS).
Portanto, os chamados déficits do GSF, quaisquer que sejam, são prejuízos do sistema, não de usinas. Aqueles que afirmam que a privatização e o fim do regime de cotas irão reduzir os preços da energia fingem ignorar isso.
E há uma forma simples de medir a contribuição das usinas em cotas para o sistema interligado. A tarifa efetiva recebida pelas usinas cotizadas da Eletrobras pela energia elétrica em 2019 foi de 44,5/Mwh. No mesmo ano, o preço praticado no mercado livre foi de 178,15/Mwh. Como o plano é descotizar essas usinas e jogar toda a energia no mercado livre, é de se esperar um aumento relevante no preço da energia elétrica quando isso ocorrer, mesmo considerando o custo do GSF relativo às usinas que atuam no regime de cotas.
O governo federal indica ainda ter a intenção de levar adiante a privatização da Eletrobras antes mesmo da reforma do setor elétrico que pretende discutir no Congresso, duas mudanças que devem afetar sobremaneira o horizonte de desenvolvimento que se coloca para o país. Assim como a privatização da Eletrobras, aprofundar nosso modelo mercantil do setor elétrico é um grave erro estratégico. O setor elétrico é central para uma economia. Erros graves nesse setor têm potencial explosivo.
Infelizmente, a fragilidade dos argumentos em nada atrapalha o avanço do projeto. Pouco importa que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, principal entusiasta das privatizações, dê declarações que revelam seu total desconhecimento sobre o assunto, inclusive sobre a área de atuação da empresa.
Aliás, no Chile, país que Guedes utiliza como modelo, em um dos primeiros protestos contra o governo neoliberal de Piñera, o povo Chileno ateou fogo na principal empresa privada de energia elétrica do país, logo depois de mais um anúncio de aumento de 15% no preço da energia elétrica. Foi o início de uma grande revolta. Fica o alerta.
Fonte: AEEL publicado na Revista Carta Capital