A mudança da legislação nacional do saneamento e a COVID-19
por Ricardo de Sousa Moretti e Edson Aparecido Silva*, especial para o Viomundo
A pandemia da COVID-19 deixou clara a necessidade de se buscar boas condições de saúde pública para todos, indistintamente.
Não existe uma linha que separa infectados de não infectados pelo vírus e a busca de solução demanda respostas coletivas.
Os mais pobres são os mais afetados, basicamente por 3 fatores:
*são os que têm maiores dificuldades para se isolar, com isso estão mais expostos e se contaminam mais facilmente;
*são os que correm maiores riscos nos casos de contaminação, por conta de maiores ocorrências de doenças pré-existentes e debilidades de saúde em geral; e
*são os que mais sofrem as consequências econômicas que são trazidas pela pandemia.
Apesar do seu impacto desigual, a pandemia deixou clara a necessidade de pensar a saúde pública de forma abrangente e mostrou a importância de todos terem acesso ao saneamento, para que possam se prevenir da doença.
A recente descoberta da presença do vírus nas fezes dos infectados (Correspondence do The Lancet, de abril de 2020) ilumina ainda mais a preocupação com os locais sem disposição adequada dos esgotos, em especial onde o esgoto segue lançado a céu aberto.
Essa constatação surge no momento em que se encontra em discussão no Senado Federal o Projeto de Lei 4.162 de 2019 que altera a Lei 11.445 de 2007, que definiu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, entre outras.
O PL 4.162 traz diversas mudanças na legislação atual de saneamento, mas o principal objetivo, inquestionavelmente, é induzir a privatização dos serviços de saneamento no país e limitar a liberdade dos municípios em decidir a melhor forma de prestação dos serviços, seja operando diretamente, seja concedendo o serviço a uma companhia estadual, seja repassando para a iniciativa privada.
Vale destacar que a legislação atual é relativamente recente, foi aprovada em 2007 e regulamentada em 2010, e que esse marco regulatório não impede a participação do setor privado, tanto é que já existem várias cidades no Brasil em que o serviço é realizado por empresas privadas (Manaus, parte do Estado de Tocantins, entre outros) e há vários locais em que existe capital privado na empresa que opera o saneamento, como é o caso da Sabesp em São Paulo.
Portanto, a justificativa de mudança na legislação para permitir a participação privada não se sustenta.
O principal argumento utilizado pelos defensores dessa nova proposta para ampliar a privatização é que o Brasil apresenta muitos problemas e atrasos na expansão dos serviços, o que mostraria a ineficiência do poder público.
Essa situação seria resolvida com mais investimentos e com a eficiência e agilidade do setor privado. O que está por trás desse argumento é o interesse do setor privado em atuar em municípios lucrativos e rentáveis.
E aí, caberiam algumas perguntas.
Está indo bem o serviço onde foi privatizado no Brasil?
E mundo afora, qual a tendência?
O serviço privatizado não resolveu o problema do saneamento onde se instalou muito pelo contrário.
Em Manaus, após 20 anos de gestão privada, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, publicado em 2020, quase 200 mil pessoas não têm acesso à água e a cidade tem uma cobertura de coleta de esgoto de apenas 31,05%, e quase 70% dos esgotos produzidos são lançados nos corpos d’água.
Em Tocantins, a companhia estadual foi privatizada em 1998, mas opera apenas em 47 municípios maiores, pois devolveu ao Estado 78 municípios que não davam o esperado retorno financeiro.
E mundo afora, desde os anos 2000, temos conhecimento de pelo 235 casos em que a concessão voltou ao poder municipal, em 37 países, atingindo mais de 100 milhões de pessoas. São cidades que haviam privatizado o serviço e agora estão no caminho inverso.
Os principais motivos que justificaram a desprivatização foram a necessidade de melhoria da qualidade, da transparência financeira, de recuperação da capacidade operacional e de controle e também por que muitas famílias não podiam pagar as contas que eram muito altas.
São cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires, Kuala Lumpur e Jacarta.
Experiências de privatização da água, na América Latina, estiveram relacionadas inclusive a restrições ao acesso à água e quase provocaram uma guerra, como foi o caso de Cochabamba .
Porém, persiste a questão central- o que é necessário fazer para que avance mais rapidamente a melhora dos serviços de saneamento no Brasil?
O que fazer para assegurar a universalização?
Antes de mais nada é importante destacar que a meta é avançar mais rapidamente na direção da universalização, pois resultados expressivos foram alcançados nos últimos anos a partir de uma intervenção firme do Estado Brasileiro, investindo no setor.
Os investimentos, que no período de 1998 a 2007 foram de 32,3 bilhões de reais, passaram a 96,8 bilhões no período, de 2008 a 2017 (valores históricos) , com a criação do PAC 1 e 2 e da aprovação da lei 11.445 de 2007.
Porém, persiste um problema de raiz — ainda se acredita que a melhoria do saneamento tem que ser financiada basicamente pelos valores arrecadados pelas tarifas e também que é fundamental que as empresas de saneamento tenham lucro.
E quando se chega em um quadro, como o brasileiro, em que a quase totalidade das residências urbanas já são servidas por sistemas públicos de água potável, o problema é complexo.
Tomemos uma cidade em que 90% dos domicílios urbanos são atendidos pelo sistema público de água potável.
Na ótica estritamente financeira, é péssimo negócio atender aos 10% que estão fora do sistema. Isso porque são locais ou situações onde vive usualmente a população mais carente, onde é mais cara a implantação do serviço, onde predominam as tarifas sociais e é baixa a rentabilidade do investimento.
Visto nessa ótica, é muito difícil chegar na universalização. Porém, a universalização é fundamental para garantir a saúde pública, como muito bem mostra a crise recente da COVID-19.
E para atender os desassistidos é fundamental que sejam aportados volumes expressivos de recursos, sem que haja garantia de retorno financeiro através das tarifas. Isto é a última coisa que deseja uma empresa privada.
Vimos que na última semana várias companhias estaduais de saneamento suspenderam o corte de água bem como a cobrança para famílias mais vulneráveis, e isso só foi possível por que as empresas ainda são públicas, o que não aconteceria caso essas empresas tivessem sido privatizadas como querem os defensores do PL 4.162 de 2019.
O avanço do serviço de saneamento no Brasil envolve uma ampla gama de iniciativas, incluindo evidentemente grande aporte de recursos para assegurar a universalização.
É necessário fazer com que os serviços cheguem nas favelas, nos assentamentos precários, nas pequenas comunidades rurais.
O Plano Nacional de Saneamento, revisto em 2019, estima que seriam necessários recursos da ordem de 357 bilhões de reais para o saneamento urbano.
É recurso significativo, porém, pequeno quando se compara por exemplo, com o que seria possível ser originado com a taxação, mesmo que pequena, das grandes fortunas.
Ou quando se compara com o volume que neste momento o governo discute aportar nos grandes conglomerados financeiros, ou as medidas adotadas para socorrer bancos na crise de 2008.
Mas seria necessária também uma mudança de postura.
Atualmente as companhias de saneamento são avaliadas pelo percentual de domicílios atendidos pelas redes públicas. Isto é importante, mas não é suficiente.
No caso do esgotamento sanitário, há que se considerar se os investimentos estão conseguindo efetivamente melhorar a qualidade dos corpos d’água.
Há municípios curiosos, em que 100% do esgoto é coletado, 100% é levado a tratamento e 100% dos córregos ou praias do município estão seriamente contaminados por esgotos, devido a ligações cruzadas entre as redes de esgotos e de água pluviais.
E na ótica financeira estrita não interessa, nem à companhia de saneamento nem aos municípios, identificar e desfazer essas ligações irregulares.
As empresas precisam ser avaliadas também pelo avanço efetivo da qualidade das águas, pelos resultados da efetiva universalização, de melhoria do ambiente, de melhoria da saúde pública e há indicadores possíveis de se aplicar, também nesta direção.
O serviço de saneamento pode ser considerado um monopólio natural.
Diferentemente de outros serviços, onde o usuário pode escolher o prestador, como por exemplo o de telefonia móvel, não é viável haver vários operadores ofertando o serviço e concorrendo entre si.
Há uma demanda cativa e é muito difícil assegurar a manutenção de preços razoáveis, em especial quando se considera a necessidade de não só assegurar a oferta do serviço, mas também assegurar a acessibilidade a quem tem poucos recursos.
Como muito bem aponta a ONU, a cobrança pelos serviços de saneamento não pode inviabilizar que a pessoa tenha acesso a outros serviços que são também direitos humanos e essenciais à sobrevivência, como por exemplo à comida e moradia.
Em um país tão desigual como o Brasil isto significa que uma parcela expressiva da população precisa ter acesso a uma tarifa social ou a situações de gratuidade. E é claro que as empresas privadas não terão qualquer interesse em ampliar a parcela daqueles que pagam pouco pelo serviço.
Um dos exemplos que indicam o desastre de uma eventual privatização do saneamento é o fim do subsídio cruzado, onde os municípios superavitários subsidiam os deficitários.
Num processo generalizado de privatização, o que vai interessar ao privado são os municípios mais rentáveis e dessa forma se colocará fim ao subsidio cruzado.
Assistiremos a uma maior dificuldade dos pequenos municípios, onde será inevitável ou a elevação das tarifas ou ao aumento dos subsídios por parte do poder público.
A universalização do saneamento é uma meta inquestionável quando se pensa na necessidade de qualificar a saúde pública.
Isto demanda várias mudanças, inclusive do aporte público de recursos.
Mas não há qualquer dúvida que a indução à privatização da operação dos serviços não virá a contribuir para a necessária mudança.
Pelo contrário, ampliará a exclusão das pessoas de baixa renda que não terão disponibilidade ou condições de pagar pelos serviços. E nesse contexto, todos estarão em risco.
*Ricardo Moretti é professor do Programa de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor visitante do Departamento de Arquitetura da UFRN.
*Edson Aparecido da Silva é secretário-geral do ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento) e mestre pelo Programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC.