Conforme noticiado, o principal objetivo do Governo com a privatização da Eletrobrás é auferir cerca de R$ 18 bilhões, que seriam destinados, conforme o projeto inicial, à redução do déficit fiscal do país, que se aproxima de R$ 1 trilhão. Praticamente um furo na água. Agora, após negociações com o Congresso, parte da receita esperada teria outras destinações.

Essa privatização seria feita mediante capitalização da empresa, de modo a reduzir a participação acionária governamental a menos de 50%, com o cuidado de limitar a dos novos acionistas a não mais de 10% do capital e de dotar o Governo do poder de vetar propostas da nova administração mediante uma “Golden Share”. A participação da Empresa na Itaipu Binacional, a Eletronuclear e o CEPEL, responsável pelas atividades de P&D, permaneceriam sob controle governamental, numa nova empresa. Aparentemente não figura entre os objetivos da privatização da Eletrobrás dota-la de maior flexibilidade gerencial, menor influência política na designação de dirigentes e maior liberdade para recusar projetos de interesse puramente político, prejudiciais à empresa e aos consumidores, bônus esses geralmente apontados para justificar privatizações.

Parece que o momento, de plena crise sanitária, econômica e política não seja o mais propício para a oferta de ações, com o agravante da Golden Share, que poderia limitar a autonomia da nova corporação. Seria o caminho para a venda na bacia das almas, apesar da possibilidade de “descotizar” as instalações de geração e transmissão que atualmente operam a preços quase simbólicos desde a MP 579/2012. Essa operação, que levaria a aumento das tarifas, deveria sofrer resistência no Congresso, pois a “reavaliação” dos ativos dessas instalações, inclusive de grandes hidrelétricas, que incentivaria sua privatização, resultaria num empréstimo do novo concessionário ao Governo, a ser amortizado pelos consumidores, sem nenhum benefício para a qualidade ou ampliação do serviço prestado.

Mais grave é a impressão de que os estudos que levaram à modelagem do processo de privatização pouco atentaram para a natureza da empresa e do próprio setor elétrico, de seu futuro e do papel que a Eletrobrás poderá e deveria exercer nas próximas décadas. A única preocupação é com a possibilidade de um novo acionista assumir uma participação demasiado elevada no capital votante. Isto soa ingênuo, pois nada impede que diferentes acionistas se comuniquem, combinem estratégias comuns ou que sejam controlados por um mesmo governo.

Outro aspecto que deveria ser considerado é que o resultado mais provável dessa privatização, como de muitas outras, seja a transferência do controle da Eletrobrás para diversas empresas estatais ou mesmo, futuramente, outra empresa estatal, só que de outro país. E, dependendo do país que a controle, influências externas poderão ocorrer, sobretudo se regulamentações julgadas inconvenientes pelo novo acionista forem levadas a outros foros de relacionamento brasileiro com o país em questão, que não o do setor elétrico.

A primeira questão que pode ser levantada quanto ao futuro, é que sendo a Eletrobrás uma empresa de geração e transmissão, portanto não monopolista como as empresas de distribuição, não teria obrigação de investir em expansão da oferta. O objetivo de manter sua participação no mercado é do Governo, não necessariamente, em qualquer circunstância, de uma corporação de caráter privado. Outro aspecto a considerar é que o futuro parque gerador brasileiro terá grande participação de aproveitamentos de fontes renováveis como a eólica e a solar, além de mais algumas hidrelétricas sem reservatórios de capacidade expressiva. Por enquanto, mesmo tendo essas energias,  de caráter intermitente e sazonal, já assumido participação significativa na matriz elétrica, os reservatórios existentes têm sido, em boa medida, suficientes para compensar tais variações intempestivas da oferta dessas usinas. No entanto, brevemente novas formas de armazenamento de energia, com menor impacto ambiental, serão cada vez mais necessárias.

Usinas de acumulação por bombeamento e baterias são consumidores líquidos, consomem energia. Hoje o custo desse serviço prestado pelos reservatórios, às vezes complementado por usinas térmicas, é levado aos encargos do sistema. No futuro, deveria ser pago pelos geradores que dele se beneficiam, para que os custos da geração dessas fontes, inclusive de sua inserção no sistema interligado, seja plenamente reconhecido, por uma questão de transparência e correta seleção de alternativas e alocação  de custos. A Eletrobrás poderia ser a proprietária desse amplo sistema de armazenamento, operando como um banco de energia, que cobraria pelo uso dos reservatórios e baterias, inclusive por armazenar sobras que de outra forma poderiam ser desperdiçadas. A operação em tempo real continuaria a cargo do ONS mas o serviço prestado pelas instalações de armazenamento seria remunerado. O efeito “portfolio” que justificou o MRE apenas parcialmente se aplica à geração intermitente, sem que haja desperdício e ainda mais forte interligação regional e inter-regional, sobretudo em termos de potencia disponível.

O setor elétrico tem uma série de instalações de geração e de transmissão cuja concessão está prestes a caducar e cujos investimentos já estão ou brevemente estarão amortizados. Devem passar para domínio da União, que poderia mantê-los nas empresas de origem e cobrar pelos seus serviços um preço bem superior daqueles das “cotizadas”. Seu preço deveria refletir seu valor econômico, próximo à média dos preços de mercado ou do custo marginal de expansão.

Consequentemente, o futuro setor elétrico deverá gerar substancial volume de recursos a baixo custo, pois a capacidade agregada de instalações amortizadas e em boas condições de operação será substancial. Os recursos assim arrecadados, a menos de custos de operação, manutenção e administração, seriam recursos da União. Se a Eletrobrás não for privatizada, poderá ser o gestor desses recursos ou de parte deles, pois parte poderia ser destinada a setores mais carentes.

Em suma, ao projeto de privatização da Eletrobrás deveria considerar tanto o momento notoriamente desfavorável, quanto a necessidade de refletir sobre o futuro do setor elétrico e sobre o papel que a Eletrobrás deveria assumir. Esta deveria ser redesenhada de forma a contribuir para o melhor atendimento dos requisitos da sociedade, em vista da natureza e dos condicionantes  futuros do setor elétrico. Prioridades governamentais de curto prazo e interesses imediatos do mercado pouco ou nada contribuirão para que seu papel seja definido conforme prioridades governamentais. Portanto, a privatização da Eletrobrás, sem melhor motivação do que um aporte de recursos que muito pouco reduzirá o déficit fiscal, deveria ser postergada.

Pietro Erber é Diretor do INEE e Membro do Comitê de Energia da ANE

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