No Brasil, a reflexão e o debate públicos são, frequentemente, acometidos por dois vícios: a crença excessiva em soluções legais e a dificuldade de aprender com a experiência e o conhecimento acumulados. Hoje, um terceiro fator de empobrecimento está em alta: o maniqueísmo ideológico que só enxerga e propaga caricaturas da direita e da esquerda. Juntas, essas três mazelas respondem por grande parte dos problemas da Lei 14.026/2020, mais conhecida como o novo Marco Legal do Saneamento Básico.
Aprovado em junho, o projeto do novo marco foi apresentado, sobretudo, como solução para a aceleração da universalização dos serviços de oferta de água e esgoto tratados no país (e também como melhor normatização para o tratamento de resíduos sólidos, limpeza e drenagem urbanas). Trata-se, de fato, de um desafio vital e urgente para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil, que precisa ser priorizado e abordado de modo decidido, pragmático e competente.
Hoje, no Brasil, há aproximadamente 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada e quase cem milhões sem coleta de esgoto. Para piorar, cerca de metade dos esgotos existentes não é tratada.
Diante desse desafio premente, um novo modelo regulatório deveria expressar o reconhecimento das evidências disponíveis e o conhecimento mais avançado em relação ao tema. Infelizmente, o novo marco fica bastante aquém do necessário. E, tendo sido objeto de vetos da Presidência da República, que sancionou a nova legislação em julho, tornou-se ainda mais precário, revelando-se claramente como fator de risco de retrocessos que seriam desastrosos para a sociedade brasileira.
O objetivo nº 6 da Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU prevê o acesso universal e equitativo a água potável e segura e a saneamento e higiene adequados para todos até 2030. O novo marco legal brasileiro prevê que o país se aproxime dessa meta com até três anos de atraso, fixando para 2033 o prazo limite para o provimento de água potável a 99% da população e para que o tratamento e a coleta de esgoto se estendam a 90% dos brasileiros.
Agora, à medida que arrefece o clima de rolo compressor que prevaleceu na reta final para aprovação do projeto pelo Congresso — operação açodada realizada durante a quarentena de prevenção à Covid-19 — e vão se evidenciando os limites e problemas do novo marco, já há quem fale em empurrar essa meta de “semi-universalização” para 2040. Se aceitarmos esse tipo de leniência, será enorme o risco de voltarmos ao perverso status quo da naturalização da violação continuada, em larga escala, do direito humano e constitucional ao saneamento.
Nesse contexto, as recentes apresentações — a primeira feita em julho, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), e a segunda, em agosto, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em parceria com PSOL, PSB e PT — de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) dão ao Supremo Tribunal Federal (STF) a oportunidade de prover consistência jurídica ao novo marco legal, evitando os maiores riscos de retrocesso. Lançando mão de seu poder de modular a nova lei para torná-la coerente com a Constituição, o Supremo poderá também poupar o setor do saneamento e a sociedade dos novos problemas, obstáculos, desorganização e incerteza que decorreriam da manutenção dos vetos presidenciais.
A essência do novo marco
Para entendermos melhor a situação atual, os riscos e desafios que precisaremos enfrentar — primeiro para não retroceder e, em seguida, para avançar na busca da universalização do saneamento —, devemos identificar os fundamentos do marco aprovado e suas implicações.
O novo marco legal do saneamento se propõe, essencialmente, a promover estas três mudanças:
— Estabelecer e implementar metas e parâmetros técnicos, e promover mais eficiência de gestão, em todo o país, concentrando atribuições e poder regulatório, de fiscalização e controle, na Agência Nacional de Águas (ANA), por meio de normas de referência;
— Prover mais segurança jurídica para o setor retirando obstáculos que possam dificultar a expansão dos serviços e atrair mais investimentos para viabilizar a universalização;
— Abrir mercado para a iniciativa privada estabelecendo limites e vetos para arranjos entre entes públicos, obrigando-os a substituir os atuais contratos de programa (forma de consórcio firmado entre instâncias estaduais e municipais para o provimento de serviços de saneamento) por concorrências para concessões abertas a empresas privadas.
Ao analisarmos cada um desses três supostos “pilares para a universalização” à luz tanto das evidências acumuladas pelo setor do saneamento no Brasil e no exterior quanto das condições mais específicas do país, em seus aspectos jurídico-constitucionais, socioeconômicos, geográficos, ambientais, os contrastes entre a promessa e a realidade saltam aos olhos. Constatação que se torna mais evidente tendo em vista o “novo normal” de crise continuada que estamos vivendo.
A concentração excessiva de funções e poderes na instância federal dificilmente irá colaborar para a formulação de soluções locais e regionais que a realidade brasileira, em sua diversidade, demanda. Além disso, vai de encontro à titularidade municipal do saneamento prevista na Constituição e à natureza intrinsecamente regional do desafio de construir sistemas de provisão e manejo de água e esgoto racionais, eficientes e sustentáveis.
Ao pretender retirar das instâncias estaduais e, sobretudo, dos municípios, atribuições e poderes lastreados na Constituição, o novo marco gera um novo e amplo campo de disputas judiciais, aumentando, na prática, as inseguranças e incertezas que dificultam a atração de investimentos, o cumprimento de metas e a aceleração da expansão dos serviços.
Retirar do poder público local e regional a liberdade de estabelecer políticas públicas, fazer arranjos e parcerias — sejam entre esses mesmos poderes, com a iniciativa privada ou com empresas de economia mista —, não só reduzirá a capacidade de solucionar situações locais e regionais, além de carecer de lastro constitucional. Essa mudança trazida pelo novo marco e agravada pelos vetos presidenciais implicará, no mínimo, fragilização de alguns dos modelos regionais de saneamento mais bem sucedidos no país. Na pior hipótese — se forem mantidos os vetos presidenciais que, entre outros retrocessos, proíbem a continuidade de contratos juridicamente perfeitos já firmados e em vigor —, essa mudança levará a um verdadeiro desmonte desses modelos, que hoje sustentam boa parte do sistema de saneamento brasileiro, sem que se apresente um novo arranjo consistente e sustentável para substituí-los.
A ilusão central do novo marco, em que se assentam esses seus três pilares, é a ideia de que a chave para superar o desafio da universalização sustentável do saneamento básico no Brasil está na simples entrega da tarefa à iniciativa privada. Trata-se de uma visão que poderia parecer promissora na década de 1980, quando uma ideologia privatizante radical era novidade. Atualmente, a experiência internacional evidencia o anacronismo e os equívocos dessa promessa.
Realidade a ser enfrentada
No mundo todo, o saneamento básico — em especial, o fornecimento de água e esgoto — é um setor marcado por características que o diferenciam de áreas de atividade e de mercado nas quais a iniciativa privada é capaz de prover, satisfatoriamente, os produtos e serviços que a sociedade necessita e deseja. Saneamento é um direito humano e, no Brasil, um direito social estabelecido na Constituição, sendo o Estado o titular desse dever. Por sua natureza infraestrutural, monopolista, que exige fórmulas e garantias de financiamento a longo prazo, sistemas de saneamento sustentáveis demandam planejamento e articulações que contemplem diversas instâncias, interesses e necessidades da sociedade e da sua legítima representação política, nas três instâncias do Poder Executivo.
Essas necessidades dificilmente serão bem atendidas por agentes de mercado, focados, por sua natureza, na busca do máximo lucro no menor prazo possível. Isso explica por que, nas últimas duas décadas, centenas de cidades mundo afora que embarcaram, especialmente nos anos 1980 e 90, na promessa da solução privatista vêm constatando a necessidade de um maior protagonismo do poder público e trocando a privatização por arranjos que permitem planejamento e gestão norteados pelo interesse coletivo e a busca bem comum.
A experiência internacional revela que, mesmo em países mais ricos, de renda média mais alta e com menor desigualdade socioeconômica, modelos excessivamente privatistas não atendem satisfatoriamente às necessidades sociais na área do saneamento. Esperar que no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, será possível acelerar e sustentar a cobertura desses serviços para as populações mais pobres apostando essencialmente na lógica do mercado privado é um contrassenso. Algo que só se explica por falta de informação ou por interesses particulares pouco comprometidos com interesse público mais abrangente.
Não se trata de passar para o extremo oposto e defender a estatização estrita e exclusivista do saneamento. O que as experiências brasileira e estrangeira demonstram é que as sociedades são, de modo geral, mais bem servidas por arranjos sinergéticos, nos quais o poder público assume a sua titularidade e o seu protagonismo como responsável pelo provimento dos serviços e articula, de modo flexível e pragmático, diversas formas de parcerias com a iniciativa privada.
O modelo que precisamos
Um bom marco legal para a universalização do saneamento deve permitir a continuidade de modelos bem sucedidos e apontar novos caminhos factíveis para levar os serviços aos que ainda não os recebem. Isso requer respeito à Constituição, o aprimoramento de modelos de regulação e incentivo, e formas arrojadas de financiamento público a longo prazo que efetivamente viabilizem a consecução de metas na realidade de escassez de recursos que hoje se impõe. Esse modelo deve, pragmaticamente, permitir que o protagonismo público em termos de planejamento e coordenação possa se combinar com à iniciativa privada de modo a beneficiar a sociedade com mais inovação e eficiência. Sinergia que já existe e entrega resultados em várias regiões do Brasil, onde, sob liderança pública frequentemente exercida por meio de autarquias e empresas de economia mista, várias partes das cadeias de fornecimento de serviços são prestadas por empresas privadas que competem em benefício da qualidade e de melhores relações de custo-benefício.
A defesa da modulação do novo marco legal conforme a Constituição e do avanço para além do modelo que ele estabelecerá deve se concentrar nos seguintes pontos:
— Reconhecimento da provisão de água potável e de saneamento básico como direito de todos e dever do Estado;
— Confirmação, conforme a Constituição, da titularidade pública dos serviços de saneamento, com prevalência da instância municipal e flexibilidade para diferentes tipos de arranjos e parcerias entre instâncias de governo e a iniciativa privada;
— Reforço das competências técnicas e regulatórias, e de incentivos necessários à aceleração da universalização desses serviços no país — algo que pode e deve ser feito sob liderança federal (tendo em vista, inclusive, que um dos entraves à universalização é a falta de capacitação técnica de muitos municípios do país, que não contam com recursos humanos qualificados para elaborar políticas e projetos de saneamento nem editais e contratos técnica e juridicamente consistentes);
— Viabilização dessa aceleração e de sua sustentabilidade por meio do desenho de meios de financiamento efetivos mesmo em períodos de retração econômica e escassez de capital privado disponível para esse tipo de investimento;
— Aperfeiçoamento ou criação de fórmulas de subsídio tarifário dos serviços focadas no desafio central de provê-los às populações mais pobres do país, com baixa capacidade de pagamento agravada, pelo menos no curto e talvez no médio prazo, por quadros de retração econômica e desemprego.
O papel do Supremo e o da cidadania
Para avançarmos nesses sentidos será preciso primeiro barrar as ameaças de desorganização e retrocesso do setor de saneamento que hoje estão postas pela versão da Lei 14.026/2020 sancionada com os vetos presidenciais. Tarefa que o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de executar ao julgar as duas ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas pelo PDT e pelo PCdoB juntamente com PSOL, PSB e PT. Dada a relevância da matéria e a gravidade dos riscos, o STF deve incluir esse julgamento entre suas prioridades.
Cabe à sociedade civil mobilizar-se para não permitir que a lógica de desconstrução de setores estratégicos — como o de ciência, tecnologia e inovação — que vem sendo aplicada pelo atual governo federal se estenda ao saneamento básico. O preço do retrocesso numa área social tão sensível e já precária, com enorme repercussão na saúde pública, como é a do saneamento básico, será alto demais.
A gravidade do momento não permite a irresponsabilidade de substituir competência e pragmatismo e a busca de soluções efetivas por slogans ideológicos descolados da realidade (por isso, inclusive, será de extrema relevância o monitoramento dos decretos regulamentadores da nova lei).
É hora de nos mobilizarmos pelo saneamento para todos, impedindo retrocessos e articulando efetivos meios de realizar essa tarefa civilizatória que a sociedade brasileira deve a si mesma.
Rubens Naves é advogado, ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP, autor do livro “Água, crise e conflito em São Paulo” e sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados.