Quem acompanha o mercado brasileiro de energia elétrica está assustado desde o final do ano passado com o forte crescimento do consumo pelos setores industriais eletro-intensivos para exportação, estimulados pela alta do dólar. Na falta de chuvas, isso acentuava a baixa no nível dos reservatórios das usinas hidroelétricas. Já em dezembro e janeiro, os técnicos mais argutos, como o engenheiro elétrico e PhD em Economia, Manuel Jeremias Leite Caldas, alertaram para o risco de um apagão geral, como o que deixou o Amapá sem luz durante praticamente um mês entre novembro e dezembro.
Na semana passada, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) multou o Operador Nacional do Sistema (ONS) em R$ 5,75 milhões e em R$ 3,6 milhões a Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), responsável pela subestação de energia de Macapá que tinha queimado e não foi substituída, gerando o apagão. Mas a redução dos volumes hídricos nos reservatórios das hidrelétricas do Centro-Oeste e Sudeste segue em ritmo vertiginoso.
Para Manuel Jeremias “a situação é dramática. Os reservatórios fecharam abril 34,6%. Na 6ª feira estavam a 33,8%. O mês de maio pode fechar com o nível de 30%. Os meses de julho, agosto e setembro, [quando é maior a estiagem nas cabeceiras das usinas do CO-SE, que geram 70% da energia do país], são críticos. Esvaziam à base de 6% ao mês. Em junho perdem normalmente 4% de água”.
Manuel Jeremias adverte que “podemos chegar em fim de setembro abaixo de 10%”. E seus cálculos levam em conta o fato de que “as quatro grandes usinas a fio D’água construídas no governo Dilma passarão, no período, de uma produção de 16/18 mil Mwmédios para 3/4 mil Mwmedios. A geração de energia eólica pode subir 2 mil Mwmédios”. Ou seja, a conta não fecha, sem acionamento urgente, mas tardio das termelétricas, o que deve encarecer a energia com bandeira vermelha até o fim do ano, pressionando a inflação, por tabela.
Para a crise: grupo de trabalho
Diante do diante do risco daquela que classificou como “a maior crise hídrica desde 1931” gerar racionamento como em 2001 ou o apagão do Amapá, o ministro das Minas e Energia, almirante Bento de Albuquerque, criou o Sistema de Informações Energéticas do Brasil. Mais que um grupo de trabalho, o SIE Brasil tem o objetivo de gerenciar e disseminar informações de oferta e demanda de energia, instalações energéticas, recursos e reservas, preços de energéticos, equipamentos de consumo, produção industrial, eficiência, demografia, economia, emissões de partículas e prospectiva, além de informações legais e documentais. Veio tarde para evitar a crise.
Na verdade, assim como o país “celeiro do mundo” registrou a absurda inflação dos alimentos devido à disparada do dólar que levou os exportadores a venderem tudo o que podia para a China e outros mercados, a ponto de faltar arroz, milho e soja em grão (para fazer óleo, que acabou encarecendo mais de 100% no ano passado, houve a partir de maio do ano passado forte reação do setor industrial, localizada em setores que produzem bens para exportação com uso intensivo de energia elétrica (eletrointensivos).
Além da alta do dólar (e da forte retração do consumo doméstica) a produção para exportação foi estimulada pela bandeira verde implantada pela Aneel de maio a dezembro. Sem controle, o consumo cresceu tanto que em novembro a Aneel, pressentindo o pior, trocou a bandeira verde pela vermelha 2, o nível mais alto, com acréscimo de R$ 6,00 (em números redondos) por cada 100 KWH consumido a mais. Ou seja, houve má gestão go governo, incluindo os vários ministérios envolvidos (sobretudo MME e Economia) e o Banco Central.
Os maiores consumidores
A indústria é o maior consumidor de energia do Brasil e o setor de alumínio lidera o ranking (mais de 65% do valor de uma barra de alumínio exportado está “exportando” energia). Quando o preço de um produto valoriza muito no mercado internacional e os insumos utilizados na sua produção não sobem na mesma proporção, cria-se um filão que favorece a produção para exportação.
O maior consumidor de energia do Brasil é o grupo Albrás-Alunorte, instalado no Pará, com controle da norueguesa Hydro (a energia vem de Tucuruí e agora está ganhando o reforço de Belo Monte). Houve um enorme subsídio e transferência de lucros para um grupo estrangeiro. Antes de vender o controle da Albrás para os noruegueses, a Vale era o maior consumidor de energia do Brasil; hoje está entre os 5 maiores.
A consciência da Noruega (grande produtor de petróleo e gás no mundo, graças às reservas do Mar do Norte, onde se extrai o petróleo do tipo Brent) de que precisa dar sua contribuição contra a poluição e o aquecimento global, devido ao forte crescimento do consumo de energia, fez do país o maior contribuinte (quase 90%, a Alemanha entra com 10%) do Fundo Amazônia. Mas o fundo está com R$ 2,9 bilhões bloqueados porque o governo Bolsonaro não aceitou compartilhar a governança com noruegueses e alemães, que faziam questão da presença de ONGs da sociedade civil no Conselho do Fundo. Se o governo fizesse as contas, veria que está perdendo duplamente.
O 2º maior consumidor é o grupo siderúrgico Arcellor-Mittal, controlado pelo grupo indiano Tatta. Em 3º vem a petroquímica Braskem (Odebrecht), que gasta muita energia nos vários polos petroquímicos em que opera e na Salgema, cuja exploração de jazidas subterrâneas afundou vários bairros de Maceió (AL). A Petrobras entra no grupo dos 5 grandes. Ela faz largo uso da co-geração e tinha enveredado, no racionamento de 2001, na construção de termelétricas para poupar os reservatórios de água na seca.
Nos dados do IBGE, a produção industrial em março caiu 2,4% ante fevereiro, mas avançou 10,5% frente a março de 2020, quando houve parada de muitas atividades na 2ª quinzena, quando foi decretada a pandemia da Covid-19. Mas em relação a março de 2020, alguns setores cresceram muito acima da média, puxados pelas exportações, sob estímulo do binômio dólar alto-energia barata: máquinas e equipamentos (27,5%), produtos de minerais não metálicos (27,7%), produtos de metal (24,5%), produtos de borracha e de material plástico (20,3%) e metalurgia (10,9%).
Erro de gestão
O engenheiro elétrico, Maurício Gutemberg, lembrou ter alertado, em 25 de março, para a “necessidade de se declarar bandeira vermelha já a partir de abril, de maneira a aumentar o mais rápido possível o despacho de energia provenientes de termoelétrica a óleo diesel para preservar o nível dos reservatórios da região sudeste/centro oeste que estava no 2º pior nível para o mês de março da história”. Seria a única alternativa de evitar que o país entrasse no período de seca na região que vai até meados de novembro com níveis piores do que em 2005.
Mas na verdade era em 2020 que as termelétricas já deviam ter sido acionadas para poupar a água dos reservatórios das usinas. Nos últimos anos, Gutemberg reconhece que o país ampliou “muito a produção de energias alternativas, principalmente, eólica. Mas elas não garantem produção contínua e confiável de eletricidade”. Ele observa que, desde 2014, “só não vivemos racionamento de energia no Brasil como em 2001, devido à estrutura de usinas térmicas a óleo diesel, extremamente caras e poluentes”. Ele constata que “pouco foi feito nos últimos anos, para alterar essa matriz emergencial ampliando e utilizando gás natural que, apesar de ser de origem fóssil é muito menos poluente e mais barata que o diesel”.
Ele adverte que a máxima “de que 2001 não se repetirá”, gerou certa acomodação que não corresponde à verdade. Para que 2001 (o racionamento traumático) não se repita, “as termoelétricas por disponibilidade têm que ser acionadas com mais celeridade, pois em período de seca mais intensa, fora da curva, como a que viveremos em 2021, colocará o sistema elétrico brasileiro sob o fio da navalha.
Ele dá alguns exemplos de erro de gestão: “o baixo acionamento das termoelétricas a óleo diesel diminui o grau de liberdade de ação do governo caso haja recrudescimento da seca em termos históricos, como já ficou claro nesse mês de abril, início da fase da seca na região Sudeste, com queda do nível dos reservatórios (4ª vez que isso ocorre nos últimos 17 anos).
A Bacia do Paranaíba, está no pior nível de reservatórios da história. Duas das maiores barragens do Brasil, Emborcação e Nova Ponte, que juntas representam 15,3% da capacidade de geração de energia hidroelétrica, já estão no pior nível da história para essa época do ano, mesmo comparando com a época do racionamento de energia do governo FHC em 2001. Para Gutemberg, não há alternativa: “Todas as térmicas serão despachadas. Claro que tem algumas em manutenção, mas tudo que pode ser despachado em algum momento vai”, disse.
Fonte: Jornal do Brasil