A crise hídrica castiga o bolso do brasileiro. Até agosto, a conta de luz residencial subiu 10% no ano e 21% em 12 meses.
E o povão que se prepare, pois a privatização da Eletrobras tem tudo para piorar as coisas, uma herança maldita que o governo Jair Bolsonaro deixará para o sucessor, se é que não será ele próprio.
Autorizado pelo Congresso em junho, o governo corre para abrir mão do controle da empresa até o fim do mandato do presidente, no ano que vem. O BNDES estuda a modelagem do processo, o Conselho Nacional de Política Energética define parâmetros setoriais, o governo tira Itaipu e Eletronuclear do âmbito da estatal.
Há quatro ações no Supremo Tribunal Federal contra a lei da privatização, mas a perspectiva para os partidos políticos que as propuseram não é nada boa, pois elas estão aos cuidados do ministro Nunes Marques, um indicado do ex-capitão.
Para arrancar a aprovação parlamentar da Medida Provisória 1.031, a da privatização, transformada depois na Lei 14.182, o governo enganou o Senado, pelo que se descobre agora. Utilizou uma variável de faz de conta na promessa de que a tarifa de energia cairá quase 7% para a população, após a Eletrobras ser entregue a particulares.
Há mais coisa que não cheira bem.
Um processo na Justiça Federal do Rio expõe uma espécie de ação entre amigos no bilionário negócio com a Eletrobras, enredo que tem um grupo financeiro com elos com membros do governo. O que talvez seja o motivo de a lei da privatização ter um dispositivo flagrantemente “fura-teto” de gastos, mas a turma da Faria Lima, para quem teto é vaca sagrada, guarda silêncio de monge tibetano a respeito.
A privatização tem duas etapas. Na primeira delas, a Eletrobras lançará novas ações na Bolsa, e o governo não poderá comprá-las. Com isso, o naco federal na companhia, hoje de 58% entre o que o governo tem diretamente (42%) e via BNDES (16%), ficará diluído. O maior acionista passará a ser privado, o qual terá poderes sobre 30% da geração de energia do País e sobre 50% das linhas de transmissão, números que fazem da empresa a maior do ramo na América Latina. A segunda etapa é assinar novos contratos entre a Eletrobras e a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel.
A estatal possui 230 usinas, das quais 22 operam no regime de “cotização”. Neste, o preço da energia gerada por elas é controlado de forma rígida pela Aneel. Gira em torno de 75 reais por megawatt-hora, atualmente. Nas demonstrações contábeis de 2020 da Eletrobras, estava em 60 reais.
No mercado spot, uma espécie de Bolsa em que o preço da energia é definido livremente entre vendedores e compradores, o valor é bem maior. Agora em setembro, está em 580 reais o megawatt-hora, cinco vezes mais que no mesmo mês de 2020, encarecimento resultante da crise hídrica, que reduziu a produção das hidrelétricas, a mais barata das energias. Em 31 de agosto, o Conselho de Política Energética fez uma reunião extraordinária para definir parâmetros da privatização da Eletrobras.
Um deles era o preço médio da energia elétrica que vai ser gerada no País nos próximos anos. A cifra na mesa era de 233 reais por MWh, entre 2022 e 2025. Declinaria aos poucos até 2028, quando chegaria a 155 reais. Os dois preços foram calculados pelo Ministério de Minas e Energia.
O chefe da pasta, Bento Albuquerque, dono de contracheque de 64 mil reais, graças ao salário civil e ao de almirante da reserva, é quem comanda o conselho.
O ministério dizia outra coisa, quando o Senado aprovava a privatização, em junho, pelo placar apertado de 42 a 37 votos.
Em um documento que correu gabinetes, citava 155 reais desde já. Foi com base nesse valor, entre outras variáveis, que o governo garantia, no mesmo documento, que a conta de luz residencial não só não subiria após a privatização, como diminuiria 6,34%. (Para empresas e indústrias, projetava-se variação zero.) A suposta fatura mais barata para a população constava de uma cartilha que o governo lançara em fevereiro com o objetivo de quebrar resistências do Congresso contra a MP 1.031. A papelada não descrevia as variáveis por trás do barateamento, do mesmo modo que a Receita Federal se nega a divulgar estudos sobre a reforma do Imposto de Renda, aprovada pelos deputados e agora debatida no Senado.
A pasta de Minas e Energia só enviou alguns números ao Senado, após o chefe de sua assessoria econômica, Hailton Madureira de Almeida, ter sido cobrado durante uma audiência pública virtual com senadores em 2 de junho, 15 dias antes da votação da privatização. A audiência havia sido proposta e comandada por Jean Paul Prates, do PT potiguar, líder da minoria. Na quarta-feira 22, o senador recebeu uma carta da Associação dos Empregados da Eletrobras a afirmar que a “mudança drástica de números” (de 155 para 233 reais, variação de 50%) causa “perplexidade” e foi uma “tentativa de ludibriar o Senado”. E o petista concorda: “Este é um governo contumaz em cenários fictícios, que cria cenário otimista para vender no Congresso. Aconteceu na reforma da Previdência”. CartaCapital revelou a trapaça previdenciária em setembro de 2019.
Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério de Minas e Energia diz que o preço de 155 reais é uma média apurada em 2020 e que o de 255 reais é uma atualização em 2021.
E admite: “O real impacto ao consumidor será conhecido ao longo dos anos, na medida em que a energia for demandada pelas distribuidoras e contratada, e avaliando os aportes da Eletrobras na CDE”.
A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) é um encargo pago pelas distribuidoras de energia, para subsidiar a conta de luz da população de baixa renda, por exemplo. Surgiu após o racionamento de 2001, obra da gestão tucana de Fernando Henrique Cardoso.
Para Prates, foi no mínimo um erro o governo ter usado o preço de 2020 para assegurar que a conta de luz cairá com a privatização.
A demanda por energia no ano passado foi menor, em razão da pandemia, logo, o preço não foi pressionado. O petista pretende levar o “cenário fictício” para ser discutido na comissão que o Senado recém-criou para acompanhar a crise hídrica.
Planeja ainda acionar o Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo.
O TCU terá de dar sinal verde à privatização, processo nas mãos do ministro Aroldo Cedraz. Em 22 de junho, um dia após a aprovação definitiva da privatização pelos congressistas, a presidente da Corte, Ana Arraes, recebeu da associação de funcionários da Eletrobras denúncias de inconstitucionalidades na lei.
Um dos dirigentes da entidade, Emanuel Mendes Torres, lembra que, no governo Michel Temer, a Aneel estimava em 14% a paulada na conta de luz com a privatização.
Com Bolsonaro, a agência calou- se. “Vai subir 18%, mostramos isso aos parlamentares”, diz Torres. E ressalta: é uma “bomba-relógio” programada para estourar em 2023, no colo do sucessor de Bolsonaro- se é que não será ele próprio -, em razão do calendário privatizador.
Ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética, um órgão público, o engenheiro Mauricio Tolmasquim, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, crê ser impossível não haver aumento de tarifa, com um valor médio de 233 reais na geração da eletricidade. “Se for esse o preço e a hidrologia continuar ruim, o impacto na tarifa será maior do que foi calculado pelo governo”, diz. Segundo ele, a lei da privatização contém vários outros dispositivos que empurrarão a conta de luz. São “jabutis” paridos no Congresso, a fim de atender a interesses políticos e empresariais.
Em suma, os “jabutis” estimulam a proliferação de usinas que têm custo de produção maior que hidrelétricas (térmicas, pequenas centrais etc.) e lhes asseguram reserva de mercado. Um desses “jabutis” entrou no texto de forma “oral” durante a votação no Senado. O orador? Ciro Nogueira, chefe da Casa Civil de Bolsonaro.
O maior pepino tarifário é, porém, a “descotização” de hidrelétricas, segundo a economista Clarice Campelo de Ferraz, diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético, o Ilumina. A cotização surgiu no governo Dilma Rousseff, quando a petista decidiu baixar na marra a conta de luz. Na época, houve renovação antecipada de contratos de usinas da Eletrobras com a Aneel. São geradoras antigas, cujo investimento para construí-las está amortizado.
Segundo estimativas da Associação de Empregados da Eletrobras, essas usinas abastecem cerca de 60% dos lares brasileiros. Elas deixarão de vender a 75 reais o megawatt-hora e poderão cobrar o valor do mercado spot aquele que o governo projeta em 233 reais de 2022 a 2025.
O órgão regulador federal já elabora a minuta dos novos contratos, em que permite a atuação no mercado livre por parte das futuras usinas descotizadas. Essa minuta está em consulta pública. “Ou seja, você deixa de ter tarifas estabelecidas pela Aneel, em que a Aneel observa item por item e define qual seria a tarifa justa ( .. .), para uma situação em que essas usinas passam a ter liberdade de vender essa energia ao preço de mercado.” Palavras de Thiago Magalhães, chefe de gabinete-adjunto do diretor-geral da agência, durante a audiência pública do Senado em 2 de junho. “Vai ter pico de preço, uma explosão tarifária”, afirma Clarice Campelo. Por quê?
O pano de fundo da privatização é a crise hídrica. Como se viu, o atual preço de mercado da energia está em 580 reais o megawatt-hora. Em agosto, ao anunciar a criação da bandeira “escassez hídrica”, a Aneel informou: na bandeira verde (situação de sobra de água nos reservatórios das hidrelétricas), o preço médio é de 169 reais; na amarela, de 257 reais; na vermelha 1, de 371 reais; e na vermelha 2, de 2.443 reais. De uma bandeira a outra, o que muda é a sobra de água e a quantidade de termelétricas em operação. Estas são usinas cuja matéria-prima (gás, carvão) custa mais que água.
Com a privatização, as hidrelétricas descotizadas poderão cobrar quase o mesmo que uma térmica. “Não se faz isso (liberar a venda de energia) em momento de escassez.
Estamos vivendo a maior seca da história, não há como fugir de uma explosão tarifária”, diz Clarice.
Pode acontecer aqui o mesmo que na Espanha e no Texas, pois não se sabe quando a crise hídrica terminará. O país europeu bate recordes seguidos no valor da energia negociada no mercado livre, antes da venda à população, alta que beira os 200% ante 2020. E uma decorrência da combinação entre o frio inclemente, que leva as pessoas a usarem mais energia para se aquecer, e a disparada na cotação do gás nos mercados globais. As térmicas espanholas vendem caro, e as hidrelétricas vão no embalo.
No Texas, um dos 50 estados ianques, a energia foi privatizada no início do século.
Em fevereiro deste ano, houve por lá uma forte nevasca, a ponto de o presidente Joe Biden ter decretado estado de calamidade. Os geradores de energia ficaram congelados, houve apagão. Para escapar do frio, a população consumiu mais energia. Resultado: contas de luz de até, pasmem, 90 mil reais. Detalhe: Donald Trump, o antecessor de Biden, queria privatizar todo o setor elétrico dos Estados Unidos, mas não conseguiu, em razão de resistências nascidas do medo de uma disparada nas contas de luz.
Se a população terá motivos para chorar com a privatização da Eletrobras, há quem deverá rir à toa: os futuros donos e os acionistas da empresa. E aqui temos um capítulo com cara de ação entre amigos. Um capítulo que chegou à Justiça e tem como personagens o grupo financeiro Genial (ex-Brasil Plural), fundado pelo atual presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, e o BNDES, comandado por um pupilo, Gustavo Montezano, do ministro da Economia, Paulo Guedes.
O Grupo Genial possui uma corretora de valores, a Genial Gestão Patrimonial, que controla um fundo, o GF Gestão de Recursos, detentor de 5%das ações preferenciais (sem direito a voto) da Eletrobras.
Em maio, outra firma do grupo, o Banco Genial, foi contratada por 5,7 milhões de reais pelo BNDES, em um consórcio do qual fazem parte também uma auditoria (BDO), uma empresa de energia e engenharia (Thymos) e uma banca advocatícia (Lefosse), para serviços de duo dilligence na Eletrobras. Esse serviço é um pente-fino jurídico, contábil e econômico-financeiro na empresa energética que o BNDES usará para decidir como será o lançamento de novas ações da estatal, ou seja, como o governo deixará de ser o sócio majoritário. Em julho, após a contratação do Banco Genial pelo BNDES, outro braço do Grupo Genial, o da área de investimentos, recomendou a clientes que comprassem ações da Eletrobras.
Para o Coletivo Nacional dos Eletricitários, que representa todos os sindicatos da categoria, essa situação configura conflito de interesses e dá margem ao uso de informações privilegiadas por parte do Grupo Genial. Afinal, este está nas três pontas de um mesmo negócio: controla um fundo que é acionista da Eletrobras, depois ganhou acesso a dados estratégicos da empresa e, por fim, sugeriu a clientes que investissem nela. O coletivo entrou, em 19 de agosto, na Justiça para tentar anular a contratação do Banco Genial pelo BNDES. Na ação, cita “ato lesivo ao patrimônio público” e ao mercado de capitais. O processo corre na 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro, com o juiz Mauro Souza Marques da Costa Braga. Em 17 de setembro, o magistrado deu 15 dias para o BNDES e o Banco Genial se manifestarem, antes de decidir se dará a liminar pedida na ação.
Os funcionários da Eletrobras também denunciaram o caso ao TCU e à Comissão de Valores Mobiliários, “xerife” do mercado financeiro. A Eletrobras não quis comentar o assunto, por ser, segundo diz, da competência do BNDES. Daí os esclarecimentos foram examinados como “questões que pudessem ensejar eventual conflito”, não foi “observado nenhum óbice em relação aos contratados” e o tema é acompanhado pelo TCU. Ao se debruçar sobre situação similar, a contratação pelo BNDES de consultores para a privatização do Serpro (órgão federal de processamento de dados), a Corte de contas viu nos procedimentos internos do banco (não há licitação, mas convite a interessados) algo que merecia atenção.
Questionado, o Banco Genial não comentou o assunto. Segundo CartaCapital apurou, a empresa acredita não haver conflito de interesses, pois, embora pertença a um mesmo grupo, a holding Genial, é uma divisão apartada da área de investimentos (aquela da recomendação da compra de ações) e da gestora de recursos (aquela que controla um fundo detentor de 5% da Eletrobras). Pode ser. É fato, contudo, que a holding, o banco e a gestora de recursos têm ao menos uma pessoa em comum no quadro de sócios, o economista Rodolfo Riechert, o principal executivo do grupo. Riechert passou pelo antigo banco BTG Pactuai, aquele fundado por Paulo Guedes, e foi sócio de Pedro Guimarães, da Caixa, até este entrar no governo.
Conflitos potenciais à parte, o fato de muitos endinheirados lucrarem com a privatização da Eletrobras ajuda a entender por que o “mercado” faz vista grossa para uma malandragem do governo.
Pela lei da privatização, em dez anos serão investidos 8,5 bilhões com dinheiro da Eletrobras na Amazônia, nas bacias dos rios São Francisco e Parnaíba, ambos no Nordeste, e em Minas. A grana será dada pela empresa ano a ano e ficará em fundos controlados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. “Sem dúvida, trata-se de um instrumento para contornar o teto de gasto. E uma despesa de natureza pública, que aparecerá como gasto privado para não computar no teto”, diz o economista Bruno Moretti, especialista em orçamento público.
Não sejamos estraga-prazeres. Deixemos os de sempre se esbaldarem mais uma vez.
Fonte: Carta Capital