Ainda é impossível saber em detalhes os efeitos do novo marco legal do saneamento, sancionado há cerca de um ano e meio. Uma questão, entretanto, já parece ser certa: tal como prometeram seus defensores quando eram debatidas no Congresso, as novas regras de fato têm estimulado a privatização de empresas do setor.
Para Francisca Adalgisa da Silva, diretora de projetos e ex-presidenta da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp (APUSabesp), ainda que a preocupação do novo marco legal – garantir investimentos na área – é legítima, a forma desenhada para isso gerará efeitos sociais que prejudicarão a população, principalmente a mais pobre, no futuro.
Confira abaixo trechos da conversa do Reconta Aí com Silva.
Reconta Aí – O novo marco legal do saneamento foi aprovado no Senado há cerca de um ano e meio. Já é possível estabelecer uma correlação entre a aprovação e um avanço da privatização do setor?
Francisca Adalgisa – O novo Marco Legal do Saneamento Básico vem propiciando avanços na privatização de serviços, tendência que, com a maior segurança jurídica provida pela decisão do Supremo, deverá, se ampliar de forma inconteste, a população à mercê das lógicas do mercado.
No atual momento histórico, está ocorrendo um acelerado processo para tornar a água propriedade privada de empresas multinacionais. O texto do “novo marco regulatório” faz parte de uma grande estratégia do capital, que visa transformar a água em mercadoria e propriedade privada, em todo território nacional. Isso representa, para além do saneamento, a perda de nossa soberania, como povo do Brasil, em conjunto com promoção de todos os demais programas neoliberais, que estão em tramitação no Congresso.
Reconta Aí – O novo marco, segundo seus próprios defensores, favorecia a privatização. É possível identificar processos de privatização com irregularidades ou polêmicas após sua aprovação?
Francisca Adalgisa – O caso da CEDAE [companhia de saneamento do Rio de Janeiro] é emblemático para ilustrar como o capital internacional, aliado a instituições nacionais, vem atuando no processo de privatização do setor de saneamento no Brasil, em articulação com recursos públicos recém-direcionados para capitalizar os avanços do setor privado nessa área, com foco no papel do BNDES na estruturação de leilões vinculados a fluxos financeiros, produzindo resultados claros em termos de perspectivas de investimento.
Uma contradição, partindo da lógica que os recursos públicos estão financiando a privatização de um monopólio natural, que por sua essência, é fundamental para vida e para produção de alimentos, bens e serviços. De acordo com o Ministério da Economia, após a aprovação Lei Federal 14.026/2020, os projetos de saneamento em fase de contratação na carteira do BNDES alcançaram a cifra de R$ 35,3 bilhões – montante cerca de dez vezes maior que a média de R$ 3 bilhões anuais registrada nos anos anteriores.
Em 2021, mesmo antes de se consolidar a venda da CEDAE, maior estatal do Rio de Janeiro, com oferta de 17 milhões de euros, vendida para fundos internacionais, já havia denúncias de fraudes e de diversas irregularidades no processo. A abertura do leilão da CEDAE deu-se em meio a diversos questionamentos técnicos, jurídicos e sociais.
As irregularidades vão desde os aspectos técnicos, como apontou o Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da UFRJ, até ao campo jurídico, no qual o Tribunal de Contas do Estado apontou irregularidades no primeiro edital e a própria ALERJ chegou a aprovar um Projeto de Lei Complementar suspendendo os efeitos do Decreto para privatização e, por conseguinte, o próprio leilão.
Projeto de lei este, que de forma autoritária, foi derrubado pelo governador Claudio Castro, atropelando a ALERJ e fazendo valer os interesses do mercado. A população e instituições técnicas foram simplesmente desconsideradas no processo. Prevaleceu a lógica do lucro sobre o direito à vida, ampliando ainda mais as desigualdades sociais no Rio de Janeiro.
Reconta Aí – Já é possível fazer um balanço das experiências de privatização do saneamento pós-novo marco?
Francisca Adalgisa – Ainda é cedo para avaliar as consequências do processo de privatização do setor de saneamento. Atualmente o que estamos vendo é o acelerado processo de entrega do setor. Existe uma forte ampliação de capital privado no setor.
Desde a sanção do Marco legal, foram realizados quatro leilões para concessão de serviços de saneamento: em Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, sendo o último com maior volume de investimento privado, R$ 29,7 bilhões.
Outros locais como Amapá, com estimativa de investimentos na ordem de R$ 3,1 bilhões, e Porto Alegre [RS], com R$ 6,7 bilhões em investimentos e R$ 2,2 bilhões de outorga, seguem o mesmo destino. A questão aqui posta é: se a privatização do setor não der certo, como já vimos em outros países, o processo de reversão é extremamente difícil e oneroso para a sociedade. As próximas gerações serão penalizadas e as desigualdades sociais ainda mais ampliadas.
Diante da urgência da universalização do saneamento no Brasil, não seria razoável deixar de abrir caminho para atração de recursos e atores que possam colaborar nessa tarefa civilizacional e constitucional. Com todas os seus eventuais problemas, o novo Marco Legal do Saneamento despertou a consciência de grande parte da sociedade brasileira para a premência do desafio, mas a lógica privatista aplicada no processo, com toda certeza irá impactar a sociedade em um futuro próximo e todos nós pagaremos muito caro.
*Publicado originalmente em Reconta Aí – recontaaí.com.br