Texto publicado pelo site do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (interação ONDAS-Privaqua) apresenta breve síntese a respeito da regionalização do saneamento. O texto destaque que o formato da regionalização “configura-se a partir de um planejamento de cima para baixo, objetivando desmantelar as Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs) e subjugar a autonomia dos municípios às decisões do governo do estado ou da União, e do capital privado”.
Leia o texto na íntegra:
A REGIONALIZAÇÃO COMO UM CONCEITO-CHAVE PARA A ANÁLISE DO SANEAMENTO
Autores: Carlos Frederico Ribeiro[1] e Érica Tavares[2]
A aprovação da Lei 14.026/2020 conduz o setor do saneamento ao início de uma nova fase, na qual a regionalização encontra-se como espinha dorsal de um novo formato de gestão e organização territorial dos serviços de água e esgoto nos estados brasileiros. Esse formato configura-se a partir de um planejamento de cima para baixo, objetivando desmantelar as Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs) e subjugar a autonomia dos municípios às decisões do governo do estado ou da União, e do capital privado. Embora nesse contexto a regionalização pareça uma mera (re)divisão político-administrativa, compreender a regionalização no bojo das concepções que a fundamentam permite problematizar seu caráter e descortinar os interesses envolvidos, não a encarando como um fim em si mesma.
Com a intenção de buscar contribuições conceituais para o enriquecimento do debate em torno da regionalização do saneamento, a Geografia se revela com uma vasta produção em torno da questão regional[1]. Ao longo do tempo, o conceito de regionalização foi ganhando diferentes abordagens, associando-se a determinados objetivos e interesses de acordo com o contexto histórico. A construção dessa trajetória, porém, não é objetivo desse texto, muito menos apresentar uma revisão bibliográfica de autores que estudam o conceito. Nesse momento, o que se pretende é compreender como podemos olhar para o setor do saneamento a partir de bases teóricas que nos ajudem a compreender como vem sendo desenhado seu atual cenário.
Este texto traz uma breve síntese de uma discussão inesgotável a respeito do tema, sendo também parte de uma construção analítica, de caráter conceitual e empírico mais geral, ligada a um projeto de pesquisa[2]. Partiremos de três perspectivas sobre o conceito. A primeira é a regionalização como instrumento de ação (DUARTE, 1980) ou como ferramenta (RIBEIRO, 2016), a segunda é a regionalização como processo (DUARTE, 1980) e a terceira é a regionalização como fato (RIBEIRO, 2016). Tais perspectivas apresentam implicação no nosso recorte temporal, que se dá a partir dos anos de 1950, período de intensa urbanização, crescente política de desenvolvimento regional e engajamento das teorias econômicas de localização.
A matemática e os métodos quantitativos ganharam expressividade nesse período, e a regionalização começou a ser utilizada como instrumento (ou ferramenta) para as ações do Estado sobre o território, sob a perspectiva do planejamento urbano e regional. Segundo Lencioni (2005, p. 191-192), “desenvolveu-se uma íntima relação entre os estudos regionais e o planejamento regional. Como decorrência, a região se tornou um instrumento técnico-operacional, a partir do qual se procurou organizar o espaço”.
Junto ao Estado, os agentes econômicos hegemônicos são os principais planejadores, modeladores e produtores do espaço urbano e do território e, por isso, são os principais agentes regionalizadores. Ribeiro (2016) aponta que essa regionalização ganha destaque entre os agentes econômicos devido a um período marcado por transformações políticas, pela mercantilização da cultura, imposição de ações mais estratégicas e instrumentais e pelo avanço das inovações (técnicas e tecnológicas). No Brasil, essa concepção foi muito utilizada no período desenvolvimentista, pois se atrelava a um projeto de país moderno e industrializado, com a presença do Estado atuando no planejamento do território nacional em conjunto com o mercado.
Entre 1968 e 1980, o país viveu um desenvolvimentismo autoritário (PRADO, 2011), sob o controle do governo militar. Com base nas gestões centralizadoras e autoritárias, voltada para o planejamento e desenvolvimento das regiões, foram criadas diversas empresas estatais controladas sob essa macropolítica, “e, o saneamento passou a ser visto como um fator essencial ao desenvolvimento, dado o intenso processo de urbanização gerador de demanda associada à salubridade” (REZENDE; HELLER, 2008, 256).
Nesse contexto, o setor de saneamento teve sua primeira forma de regionalização, instaurada a partir dos objetivos do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA,). Os espaços regionalizados correspondiam aos limites político-administrativos dos estados brasileiros e CESBs se constituíram enquanto espinha dorsal do Plano, viabilizando a atuação, intervenção e controle do poder do Estado militar sobre o território brasileiro.
As regiões, nesse período, eram compreendidas como uma totalidade lógica, e todas essas formas de regionalizar atrelavam-se a uma característica “neutra” e empírica, sob viés de um positivismo lógico, e sem qualquer criticidade sob os espaços regionalizados. Foi apenas partir da década de 1970, sob influência do materialismo histórico e dialético, que a questão regional adquiriu uma abordagem crítica. Assim, a região passou a ser vista como uma totalidade histórica, inserida e integrada a uma dinâmica global (DUARTE, 1980; HAESBAERT, 2010; LENCIONI, 2005; RIBEIRO, 2016).
Sob esse aspecto, a regionalização como processo e fato ganham destaque nas análises regionais. Elas possuem similaridades, por um lado, e se complementam, por outro. Ambas partem do entendimento de que a regionalização é um processo de formação de regiões (e não naturalmente ou logicamente concebida). Dessa forma não bastava apenas conhecer o “como” e o “porquê”, mas indagar e investigar o “por quem” e “para quem”, isto é, os interesses sociais envolvidos (LENCIONI, 2005). O levantamento dessas reflexões elevou o conceito de regionalização a um outro patamar.
A regionalização como processo propõe problematizar as desigualdades regionais como resultado de um processo social e econômico. As regiões, enquanto totalidade histórica, são analisadas a partir de seus diferentes “níveis de desenvolvimento, ou modernização, que se relacionam entre si, dentro de uma organicidade global” (DUARTE, 1980, p. 16). Isso traduz uma análise crítica das contraditórias implicações do capitalismo sobre o espaço.
Apesar do avanço metodológico, essa abordagem também sofreu algumas críticas, e uma delas foi que as análises se restringiam às dinâmicas gerais do capitalismo, o que tenderia a uma homogeneização da região e dissolução das características específicas, sejam elas sociais, culturais e/ou territoriais (DUARTE, 1980; HAESBAERT, 2010; LENCIONI, 2005). Esse motivo fez com que a região não fosse mais? uma categoria de análise interessante e, por isso, foi propagado um discurso de que o marxismo esvaziou o debate espacial da realidade (LENCIONI, 1999) e “matou” a questão regional (HAESBAERT, 2010). No entanto, a região, como aponta o próprio Haesbaert, ressuscita essa perspectiva marxista em dois sentidos: um do ponto de vista da divisão territorial do trabalho e outro dos movimentos sociais.
Complementar à abordagem de Duarte (1980), a regionalização como fato incorpora a dimensão do poder sobre o fenômeno. De acordo com Ribeiro (2016, p. 202-203), a regionalização “envolve a permanente disputa, entre atores sociais e agentes hegemônicos, por recursos que permitam garantir a preservação das fronteiras desejada”, isto é, além do processo de formação das regiões, há também os conflitos gerados no processo de institucionalização e permanência dos espaços regionalizados. Portanto, a autora corrobora que toda análise espacial exige, também, uma análise de poder.
Olhar para a regionalização como relação de poder envolve não apenas a dimensão econômica, mas inclui também organização social, cultura e decisões políticas. Os atores sociais também possuem um papel regionalizador e, muitas vezes, assumem uma postura de resistência às regionalizações impostas verticalmente. Isso indica que, para cada agente (Estado, corporações, movimentos sociais etc), o fenômeno da regionalização possui um sentido e representa interesses específicos, que são transmitidos e priorizados no ato de regionalizar.
Essas bases teóricas, aqui brevemente expostas, nos abrem caminhos para o aprofundamento do debate e reflexão sobre o processo de regionalização do saneamento. Todo processo de regionalização envolve um projeto político, econômico e social por detrás, com objetivos definidos, mas, na maioria das vezes, ocultados por discursos de fácil convencimento à sua aceitação. Através das experiências das regionalizações que o próprio PRIVAQUA e o ONDAS[3] vêm acompanhando, podemos analisar especificidades em cada estado, mas também é possível observar que a regionalização tem sido utilizada enquanto um instrumento de ação ou como uma ferramenta para reprodução do capital financeiro.
Quais são os principais agentes regionalizadores das CESBs? Para que e para quem eles estão regionalizando? Como? Quais interesses estão envolvidos nesse processo? Qual é o modus operandi do processo de regionalização no Brasil? Quais são as especificidades trazidas pela regionalização em cada estado? Quais são os movimentos de resistência? Quais conflitos esse processo tem gerado? São inúmeras as perguntas que podemos fazer sobre esse fenômeno para o desenvolvimento das análises.
O ponto de partida não deve ser a própria região, mas sim questionar como se chega a ela, e, por isso, acionar as possíveis concepções em torno do processo. Além dos interesses que estão em jogo nesse processo de regionalização do saneamento, é importante também observar e contrapor as não-escolhas ou não-decisões dos atores envolvidos. É sob esta lente conceitual e empírica que a regionalização do saneamento ganha mais recursos de análises, admitindo esse processo enquanto dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Essas abordagens fornecem base para uma discussão sobre o processo de financeirização que incide sobre setor, em seu contexto nacional e global, vis a vis ao crescente processo de privatização de empresas estaduais e da progressiva presença da iniciativa privada nas concessões municipais. As perspectivas trazidas neste texto fazem incidir, sobre a regionalização, uma análise, reflexão e interpretação para além de recortes temáticos, envolvendo escolhas analíticas e opções teóricas apoiadas no acompanhamento periódico das mudanças dos arranjos institucionais e dos vínculos entre território, economia e política, desnaturalizando, assim, os espaços regionalizados.
Referências
DUARTE, A. C. Regionalização: considerações metodológicas. Boletim de Geografia Teorética, v. 10, n. 20, p. 5–32, 1980.
HAESBAERT, R. Regional-global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
LENCIONI, S. Região e geografia. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 1999. v. 25
LENCIONI, S. Região e Geografia: a noção de região no pensamento geográfico. In: CARLOS, A. F. A.; DAMIANI, A. L. (Eds.). . Novos caminhos da geografia. Coleção Caminhos da geografia. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2005. p. 187–204.
PRADO, L. C. D. O desenvolvimentismo autoritário de 1968 a 1980. In: BIELSCHOWSKY, R. et al. (Eds.). . O desenvolvimento econômico brasileiro e a Caixa: palestras. Brasília, DF: Universidade Caixa ; Rio de Janeiro, RJ, Brasil : Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011. p. 23–34.
RIBEIRO, A. C. T. REGIONALIZAÇÃO: FATO E FERRAMENTA. In: LIMONAD, E.; HAESBAERT, R.; MOREIRA, R. (Eds.). . Brasil, Século XXI – Por uma nova regionalização? Agentes, processos e escalas. 2. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital Editoria, 2016. p. 194–212.
SOUZA, M. L. DE. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. 1. ed. RIo de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
[1] É importante ressaltar que a ciência geográfica não é a única que se debruça sobre o conceito. Outras ciências também possuem interesse sobre o debate da regionalização, desde os Estudos Literários até a Antropologia, e cada área se apropria e contribui para o enriquecimento com suas próprias abordagens (HAESBAERT, 2010), no entanto, os estudos regionais fazem parte da geografia desde o seu desenvolvimento enquanto ciência, sendo, por um longo período, o conceito de região seu “carro-chefe” (SOUZA, 2013)
[2] A pesquisa de dissertação de mestrado, ainda em desenvolvimento, está vinculada ao PPGDAP/UFF, sob orientação da professora Doutora Érica Tavares.
[3] Disponível em: https://ondasbrasil.org/categoria/biblioteca/regionalizacao-do-saneamento/
Autores:
[1] Carlos Frederico Ribeiro – Licenciado em Geografia e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas da Universidade Federal Fluminense (PPGDAP/UFF Campos).
[2] Érica Tavares – Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas (PPGDAP/UFF)