Artigo publicado originalmente pelo site do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento.

PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO E CORRUPÇÃO
Autora: Estela Macedo Alves [1]

Introdução
Quais os interesses de empresas privadas em prestar serviços de água e esgoto em municípios com baixa capacidade econômico-financeira, empobrecidos e cujos munícipes não serão capazes de financiar a universalização do saneamento através das tarifas?

Uma das hipóteses para responder esta pergunta é que, através da corrupção por vezes existente nas relações entre empresas privadas e poder público, garante-se a lucratividade das empresas. A influência pode ocorrer nas etapas de concessão dos serviços, inclusive nas decisões sobre os planos de investimentos, em geral, desenvolvidos pelas próprias empresas, e não pelos municípios, que são os titulares legais dos serviços.

Não se trata aqui do que muitos países chamam de corrupção, que é o acesso informal à água, através de carteis e máfias, comum nas periferias das cidades, nos países em desenvolvimento. Aqui tratamos da corrupção institucional, entre empresas, governos, sistemas legal e burocrático.

Os desafios da universalização do saneamento até 2030, propostos na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, descritos no Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 6 (ODS 6), precisam de grandes investimentos para serem realizados. Estima-se que será necessário cerca de 114 bilhões de dólares anuais até 2030, no mundo todo, a ser gasto por governos, municípios, bancos de desenvolvimento, agencias doadoras, instituições de caridade, empresas privadas e usuários dos serviços. No entanto, constata-se que a corrupção tem minado esses investimentos e colocado em risco a universalização do saneamento (JENKINS, 2017).

Considerando-se que, no mundo, cerca de 2,2 bilhões de pessoas não têm acesso seguro à água, 4,2 bilhões não têm acesso a serviços de esgotamento sanitário adequado e 3 bilhões não têm acesso a instalações para higienizar as mãos (UNICEF e OMS, 2019), a corrupção no setor, em qualquer escala, representa grandes passos para trás, num problema global e no exercício de um direito humano.

A ONU declarou a água e o saneamento como Direitos Humanos, em 2010, levando inclusive a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a tratar sobre a importância da integridade do setor para o desenvolvimento econômico mundial e afirmar que a principal causa da escassez de água não é a falta de água, mas são as falhas de governança, entre elas a corrupção (JENKINS, 2017).

O que se sabe sobre corrupção no setor de saneamento?
As pesquisas e textos sobre este tema são raros no Brasil. Na literatura internacional, encontramos mais material sobre corrupção no setor de saneamento, desde o começo dos anos 2000, com estudos de caso e análises de causas e consequências, por instituições internacionais. O U4 Anti-Corruption Resource Centre, ligado ao Chr. Michelsen Institute (CMI), instituto sem fins lucrativos e independente, com sede na Noruega e a Transparency International, especializada em pesquisas sobre como a corrupção entrava o desenvolvimento econômico global, quais os principais problemas e possíveis soluções.

A construção e ampliação de infraestrutura urbana de saneamento pode ser um negócio altamente lucrativo, através das grandes obras e da aplicação de tecnologias muito sofisticadas, mesmo em situações em que pequenas soluções ou manutenção de estruturas existentes resolveriam. O desvio de metas das políticas públicas para a produção de obras desnecessárias é considerado grande fonte de corrupção, que beneficia os investidores. Manutenção de sistemas, melhoria da gestão e das formas de governança, seriam investimentos muito menores e que solucionariam grande parte dos problemas dos sistemas. Além disso, é comum que as empresas paguem propinas para terem maior influência no planejamento do setor de saneamento, e dessa forma garantirem que terão lucros em seus investimentos, mesmo se tratando de investimentos em locais de alto risco financeiro (CMI, 2009).

As comunidades pobres são as mais afetados pela corrupção no setor pela redução da disponibilidade e da qualidade dos serviços, dificultando ainda mais a saída de situações de vulnerabilidade e gerando impactos na saúde (JENKINS, 2017). Por exemplo, no Leste Europeu e na Ásia Central, as construtoras afirmaram terem pagado cerca de 7% do valor de seus contratos para os governos, para que pudessem alterar os contratos conforme suas necessidades, ainda que atuando em localidades extremamente pobres (CMI, 2009). Outros exemplos ocorreram em Ghana, onde as tarifas aumentaram 80% após a privatização, e na África do Sul, onde a água era gratuita, mas a empresa privada cobrou uma taxa de reconexão de 7 dólares para prosseguir o fornecimento de água, que não pode ser paga por parte da população, causando um surto de cólera que infectou 140.0000 pessoas (JENKINS, 2017, pág.5).

A corrupção no setor de saneamento é muito atrativa, uma vez que os serviços são monopólios naturais, exigem investimentos em grandes projetos e obras e estão sob o comando de pessoas dotadas de poder discricionário, ou seja, que têm prerrogativas legais para a prática de atos administrativos com liberdades de escolha de conteúdos e de diretrizes, de acordo com a conveniência. Espera-se que a visão do burocrata ou governante, ao decidir sobre esses serviços, esteja direcionada ao bem público, porém, nem sempre está. A participação social e o monitoramento também são limitados pelo fato de o saneamento ter uma escala muito ampla e complexidade técnica, dependendo mais dos diversos setores governamentais (JENKINS, 2017).

As formas de corrupção no setor de saneamento podem se dar em diversas fases da cadeia, desde a formulação da política pública, passando pela gestão dos recursos, obras e até na prestação dos serviços (JENKINS, 2017). São observadas várias modalidades de corrupção, tais como:

– utilização de grandes projetos como propaganda política, como prioridade frente à necessidade e à eficiência da obra;
– contratos sem garantias, passíveis de renegociação para obtenção de benefícios indevidos às empresas;
– conluios, propinas e manipulação de licitações e até mesmo extorsões, nos processos de construção e manutenção de infraestrutura.

É comum entre empresas privadas ter uma pessoa com boa reputação no setor, para que passe confiança e disfarce acertos e subornos aos agentes público, para alcançarem seus objetivos (CMI, 2009).

Um dos fortes argumentos dos defensores da privatização do setor de saneamento, nos anos 1990, era a redução da corrupção. O que se tem constatado em estudos, desde aquele período, é que, em ambientes com bom controle do Estado, o setor privado executa bons serviços de saneamento. No entanto, em ambientes altamente corruptíveis, os atores privados tendem a priorizar a maximização dos lucros sobre as reais necessidades da população, em geral comercializando água potável e negligenciando os serviços de esgotamento sanitário (JENKINS, 2017).

 Encaminhando o tema da corrupção no setor de saneamento no Brasil
A corrupção é difícil de ser detectada e sanada, por sua característica intrínseca de ser secreta, mas sabe-se que, em geral ela é sistemática e institucionalizada. Considera-se necessário que se desenvolvam práticas e mecanismos de transparência, prestação de contas e integridade nos processos (UNDP, 2011).

Entre as formas apontadas para medir a corrupção no setor da água, são citados a avaliação de desempenho das concessionárias e indicadores financeiros que comparem preços contratados e preços praticados (UNDP, 2011, p.9).

As consequências da corrupção, segundo Jenkins (2017), são notadas em impactos a saúde em curto prazo, abalando a segurança alimentar e impedindo o desenvolvimento econômico, a sustentabilidade ambiental e a estabilidade sócio-política. Na prática, a corrupção afeta os custos da água potável, dificulta o investimento, aumenta a poluição das águas e impede o desenvolvimento socioeconômico.

Este artigo inicia uma abordagem mais sistemática dentro do Privaqua sobre o tema da corrupção no setor de saneamento, em busca por respostas de como proteger um setor vital das consequências da corrupção exercida sobre um serviço que vai além da infraestrutura urbana: são direitos humanos, garantem a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico do país.

Neste momento de abertura à privatização do saneamento no Brasil de forma tão agressiva e apressada, é importante notar como esse sério problema poderá, num futuro bem próximo, afetar o acesso à água e ao saneamento pelos brasileiros mais vulnerabilizados.

Sugere-se que os procedimentos licitatórios do setor sejam fortalecidos. com documentos produzidos com maior rigor e conduzindo as políticas com pactos de integridade além de participação social, que deveria ser prioritária nesses processos, incluindo associações de usuários e representantes da sociedade civil (CMI, 2009; UNDP, 2011).

Referências
CMI – Chr. Michelsen Institute. Grans designs: Corruption risks in major water infrastructure projects. U4 Brief. November 2009-n.27. Disponível em: <www.u4.no> Acesso em: 31.05.2022.

Jenkins, Matthew. The impacto of corruption on access to safe water and sanitation for people living in poverty. U4 Anti-Corruption Resource Centre. N.2017: 6, 04.07.2017. Disponível em: <https://www.u4.no/publications/improving-the-framework-institutional-reform-and-corruption-in-the-water-sector> Acesso em: 30.05.2022.

UNDP – United Nations Development Programme. Fighting corruptions in the water sector – Methods, tools and good practices. New York, oct.2011.

UNICEF e OMS. 1 em cada 3 pessoas no mundo não tem acesso a água potável, dizem o UNICEF e a OMS. 18 jun.2019. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/1-em-cada-3-pessoas-no-mundo-nao-tem-acesso-agua-potavel-dizem-unicef-oms> Acesso em: 30.05.2022.

[1] Autora:
 – Estela Macedo Alves – Pós doutoranda no Instituto René Rachou / Fiocruz e no IEA USP. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2003), Mestra em Planejamento Urbano e Regional (2009) e Doutora e Pós Doutora em Ciência Ambiental (2018, 2021) pelo IEE USP.