artigo: Haneron Victor Marcos*
Há uma palavra de ordem que permeia qualquer discussão sobre “mercado”: a meritocracia, uma perigosa — e mesmo falaciosa — palavra, na advertência de Michael Sandel desde Harvard. Aparentemente, aos ideólogos do governo federal (2019-2022) e aos lobistas que ignoraram a adolescência e os resultados da Lei nº 11.445/2007 para introduzir a Lei nº 14026/2020, convinha olvidar essa figura axial do livre mercado. Nunca se tratou de uma questão de mérito, mas de imposição do setor privado pela força; não houve um dialogismo despolitizado ou despido de ideologização que promovesse um sério comparativo entre as experiências privadas no Brasil (como nos estados de Amazonas e Tocantins) e as experiências públicas, ou entre a escassez de recursos federais para alavancar as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), que enquanto se socorriam a agentes de fomento japoneses, franceses ou alemães (como é o caso da companhia estadual catarinense), assistiam incrédulos o beneplácito do BNDES em socorrer com somas bilionárias as iniciativas nacionais de privatização, que a seu turno favoreceram empresas transnacionais.
O modelo anterior, da original Lei nº 11.445/2007, deu efetividade ao modelo corporativo-público preconizado pelo Planasa (Plano Nacional de Saneamento Básico), introduzindo a figura precisa do contrato de programa, da regulação e do controle social; no aspecto estrutural, foi perfectibilizado quando da introdução da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) exigindo administrações técnicas e despolitizadas. Era um modelo que sempre esteve aberto ao capital privado, no qual, pelo seu mérito, poderia ser a opção das gestões municipais. Nele, ao município um leque de opções: privatizar (por licitação), promover a gestão direta (desconcentrada ou descentralizada), ou conveniar com o estado com a interveniência executiva da respectiva companhia estadual. Uma escolha livre e meritória. Agora, nos moldes da Lei nº 14026/2020, a opção de livre sinergia com um ente estadual de gestão solidária passou a ser demonizada. Ironicamente, o discurso é de que as estatais podem se manter no mercado com o mérito da vitória em concorrências públicas, cuja paridade de armas é natimorta pela impossibilidade prática de resolução do subsídio cruzado, sintonizado com o respeito do saneamento enquanto direito humano (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28.07.2010). Uma das justificativas, de que a preservação do contrato de programa serviria como mecanismo para que os gestores municipais fossem pressionados politicamente para a manutenção da relação com a CESB jamais encontrou sustento. Antes e depois da Lei nº 11445/2007, centenas de concessões foram municipalizadas ou privatizadas à revelia dos interesses do estado, mesmo sem esse gatilho privatizante da Lei nº 14.026/2020. Em Santa Catarina, por exemplo, dezenas de concessões importantes como de Tubarão, Palhoça, Joinville, Lages, Itajaí e Balneário Camboriú abandonaram o sistema estadual dentro da liberdade de opção já reinante.
A regionalização, entoada como solução ao subsídio cruzado de moldes atuais para atrair o capital privado às concessões menos atrativas ou deficitárias, guarda resolução ainda distante. E é justamente a regionalização que se apresenta como o modelo sinérgico, a partir de um pacto interfederativo, habilitante à atuação das CESBs nos termos do que fora definido pelo STF em 2013 no âmbito da ADI nº 1.842 sobre a existência de interesse comum em regiões metropolitanas, microrregiões, e aglomerações urbanas. Nesses ambientes, nos quais há um interesse comum relacionado aos serviços de saneamento (técnico ou econômico, na voz do relator ministro Gilmar Mendes), surge a cotitularidade (absorvida pela Lei nº 14026/2020, ao incluir o inciso II do artigo 8º da Lei nº 11.445/2007), que por sua vez não esvazia a autonomia municipal. Tem-se que “o parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidade entre município e estado”, sendo “necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente”, sem a necessidade de que a participação desses entes num colegiado seja paritária, mas com uma proporcionalidade a prevenir a concentração de poder.
Por conseguinte, ainda que compita aos entes federativos reconhecerem e formalizarem as hipóteses de interesse comum por regiões metropolitanas, microrregiões ou aglomerações urbanas, definindo a proporcionalidade entre os municípios e o estado nos colegiados, como nos modelos de administração autárquica nas regiões metropolitanas, uma realidade se encontra incontornável: há hipótese definida de cotitularidade entre estado e município.
A exigência de licitação às concessões, de acordo com o próprio artigo 10 da Lei nº 11.445/2007, se presta àquelas não integrantes da administração do titular nos termos do artigo 175 da Constituição. Não soa coerente que, em ambiente de cotitularidade (artigo 8º, II), a entidade definida por lei para administração da região metropolitana ou microrregião, por exemplo, não possa optar pela exceção de contratação direta de uma estatal que corresponda a um dos entes pertencentes à regionalização (municipal ou estadual) abraçando a intenção constitucional do artigo 241, que não versa somente sobre as hipóteses de consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, mas, também, sobre a hipótese de transferência total ou parcial de serviços públicos, situação essa não alcançada pelo artigo 8º, § 1º, da Lei nº 11.445/2007.
A posição ideológica reside, mais uma vez, em conclusão diversa. Esta construção não está a vedar que esse colegiado interfederativo privatize os serviços numa observância de mérito ou conveniência e oportunidade, mas sim a permitir que esse mesmo colegiado tenha, no ambiente de cotitularidade, a opção de aderir a um compromisso sinérgico mais amplo entre estado e município, que tome em consideração a solidariedade regional, domínio sobre recursos hídricos, capacidade de endividamento, associação a outros serviços, entre outras inúmeras questões sem que haja um desvio ou desprezo relacionado com as metas impostas, ou aos critérios de eficiência e eficácia, sem perder de vista o caráter de direito humano atribuído aos serviços de saneamento.
Na contramão, insistindo em um lobby para a consolidação de um modelo absolutamente atrasado, um prêt-à-porter em desuso na Europa, EUA e em nosso próprio continente sul-americano, a exemplo das centenas de exemplos recentes de reestatização, a Abcon Sindicon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto) ataca qualquer iniciativa de retração à privatização forçada. Em janeiro de 2023 propôs a ADI nº 7.335 contra o modelo de regionalização da Paraíba (LCE nº 168/2021) em que busca consagrar, sob a relatoria do ministro André Mendonça, uma posição enviesada e restritiva com base justamente nos anunciados artigos 10 e 8º, § 1º, despida de uma necessária visão holística, de um garantismo que preserve o status de direito humano que não se consorcia ao objetivo de restrição desmedida à atuação pública, notadamente quando inexistente solução que resolva a exigência até o momento incontornável de um modelo de administração subsidiado e solidário, que assegure a universalidade acompanhada da modicidade tarifária. Não é preciso dizer que esse desafio à solução paraibana, pelos princípios involucrados, arrisca todas iniciativas de regionalização que guardem similitude, já encerradas ou em curso.
A decisão do STF, tamanhas as margens interpretativas, não deve escapar de um esforço hermenêutico político-jurídico. Essa deve ser uma trincheira de ação das forças antagônicas ao modelo ultraliberal superado na eleição presidencial de 2022, dentro de um front que necessita ser trifurcado no próprio Executivo, com a revogação e substituição dos estrangulantes decretos federais nº 10.588/2020, 10.710/2021 e 11.030/2022, e no Legislativo com a revisão da Lei nº 14.026/2020, especialmente para garantir de maneira mais evidente a restauração do cenário originário da Lei nº 11.445/2007 naquilo que corresponde à participação das CESBs. Nessa mesma esteira, é imperioso o resgate de atenção à PEC nº 6/2021, que visa inscrever o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5º da Constituição, que corresponderia à consagração como um direito humano, positivado na forma de direito fundamental, hierarquia máxima de nossa Carta.
Tais ações e resgates dependem, em grande parte, das forças vivas e vanguardistas que estão experimentadas no setor e conscientes, pela proximidade dos fatos, dos funestos resultados que esse status quo provoca à coletividade e ao meio ambiente. Elas devem ocorrer sem o desviar de olhos para as deficiências que precisam ser superadas (e, assim, sem deixar de enaltecer a importância da manutenção de metas e de critérios rígidos de governança e regulação), e às idiossincrasias a serem respeitadas. A se esperar que movimentos como os articulados recentemente no Fórum Social Mundial, que resultaram na Carta de Porto Alegre de 2023 e em uma agenda com o governo federal, produzam os resultados esperados, expurgando uma legislação fruto do ultraliberalismo vigente no Planalto até dezembro de 2022 e de falsas premissas que ainda exigem qualificada desconstrução a evitar interpretações que sejam restritivas à participação das CESBs, ignorem a realidade de um ambiente absolutamente dependente de subsídios cruzados, e a qualificação do saneamento enquanto direito humano que não se submete a um cabresto mercantil.
* Haneron Victor Marcos é doutor em Gestão Pública e Governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em Gestão da Inovação (Emse/França) e procurador e conselheiro de administração representante dos empregados da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).
Artigo publicado originalmente no site Conjur.