Dia 22 de março é o Dia Mundial da Água. Não é um dia de comemoração, mas um dia de luta e resistência contra a privatização da água e do saneamento.

No Brasil, iniciativas de grupos privados buscam se apropriar dos recursos hídricos com apoio de grupos liberais do Congresso Nacional. Nesse sentido, tramita no Senado Federal o PL n° 2.668, do ano passado, que, na prática, cria o mercado das águas na forma de flexibilização dos mecanismos de outorga, propiciando seu controle por segmentos privados. Trata-se de um sério risco à soberania nacional, já que grupos internacionais especulam áreas e regiões brasileiras abundantes em água.

No caso dos serviços de saneamento básico, a situação não é diferente. Sob o pretexto de universalizar o acesso aos serviços, Câmara e Senado aprovaram a Lei 14.026 em 2020, instrumento legal que, respaldado por decretos e normas regulatórias claramente parciais e favoráveis ao setor privado, vem sufocando operadores públicos e buscando o fim de sua atuação no país. Pretende, indiscutivelmente, respaldar a criação do monopólio privado do saneamento, mesmo se tratando de um monopólio natural, em que o usuário dos serviços não pode escolher o prestador, seja pela qualidade ou pelo preço cobrado.

Nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro, o Bndes se transformou numa agência de modelagem das privatizações e financiamento das empresas privadas, abandonando o “Desenvolvimento Econômico e Social” do seu nome.

A utilização do critério de maior outorga nas disputas dos leilões de companhias estaduais e serviços de saneamento se transformou numa prática que drena recursos do saneamento e onera o usuário dos serviços com a transferência destes custos para a tarifa.

Como exemplo vamos citar apenas o caso de Alagoas. No Bloco A, em leilão realizado em 30/09/2020, a BRK Ambiental Participações S.A ofertou um ágio de 13.180% em relação ao preço mínimo estipulado pelo Bndes no edital; no Bloco B, em leilão realizado em 13/12/2021, a Allonda Ambiental Participações S.A ofertou um ágio de 37.551%; e no Bloco C, em leilão ocorrido em 13/12/2021, o Consórcio Mundau (Cymi Construções e Participações S.A & Aviva) praticou um ágio de 1.227%.

Não está nos planos dos agentes privados, na sua maioria controlados por fundos de investimento de países como Canadá e Singapura, atender às populações em situação de vulnerabilidade que vivem em assentamentos precários em favelas, nos morros, quilombos e nas áreas rurais. O que lhes interessa é atuar nos grandes e médios centros urbanos, onde a necessidade de investimentos é menor porque o nível de atendimento é maior. Não por outra razão a Lei 14.026 de 2020 excluiu de suas cláusulas o saneamento rural.

É preciso rever o marco legal do saneamento, resgatando o contrato de programa como instrumento de gestão associada de serviços públicos e a autonomia municipal, entre outras questões.

O Bndes deve resgatar seu papel de agente indutor do desenvolvimento econômico e social. As regras de financiamento para o saneamento básico, operados por companhias estaduais e serviços municipais devem ser flexibilizadas, acompanhadas de um programa de revitalização e recuperação pautados na melhoria da gestão, da eficiência e da eficácia, e com a criação de programas de financiamentos voltados para o atendimento da população rural.

Seguindo exemplo de outros setores, como o elétrico privatizado, é preciso criar o Fundo Nacional de Universalização do Acesso aos Serviços de Saneamento Básico. A participação e o controle social devem estar no centro dos objetivos do novo governo de forma consolidada, afinal, os governos passam e povo fica.

O direito ao acesso à água e ao saneamento para além do domicílio deve compor, urgentemente, a agenda das políticas públicas. Não é mais possível aceitar que pessoas em situação de rua, trabalhadores (as) que exercem suas atividades nas vias e parques públicos ou privados não tenham garantido o acesso à água e a equipamentos de higiene garantidos, sobretudo às mulheres.

Tramitam na Câmara dos Deputados a PEC 06/2021, que altera o artigo 5º da Constituição Federal para incluir na Carta Magna o acesso à água potável entre os direitos e as garantias fundamentais, e no Senado Federal a PEC 02/2016, que altera o art. 6º da Constituição Federal, para incluir, entre os direitos sociais, o direito ao saneamento básico.

Seria um grande feito por parte dos (as) parlamentares aprovar, ou no mínimo fazer avançar a tramitação dessas PECs no Dia Mundial da Água. Dessa forma, o Brasil caminharia ao encontro da Resolução nº A/RES/64/292 de 2010 da Assembleia Geral da Organização da Nações Unidas (ONU), declarando “que o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico são direitos humanos fundamentais”.

A defesa da água como direito humano fundamental transcende a agenda nacional e será pautada de forma intensa por organizações da sociedade civil de vários países dos cinco continentes do mundo na Conferência da ONU sobre a Água, que será realizada entre os dias 22 e 24 de março, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

The People’s Water Forum organiza eventos paralelos que tratam de temas como a privatização dos serviços de água e saneamento e os riscos para os direitos humanos e governança democrática dos serviços de água e saneamento. (Mais informações, acesse: https://thepeopleswaterforum.org/2023-un-water-conference/side-events/).

 

Edson Aparecido Silva é sociólogo, mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC (Universidade Federal do ABC), tem especialização em Meio Ambiente e Sociedade, integra o Conselho Estratégico Universidade Sociedade da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), secretário executivo do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento) e assessor de Saneamento da FNU (Federação Nacional dos Urbanitários).