Artigo: Haneron Victor Marcos *
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A Lei 14026/2020, que altera significativamente a lei nacional do saneamento básico (11445/2007), foi posta à mesa em ambiente pandêmico, sem qualquer qualidade dialética, ao contrário daquele momento inaugural do marco em 2007. O resultado veio eivado de deficiências técnicas, e por uma imposição neoliberal que não dialogou com os principais atores do setor, com a realidade econômica e social do país e dos estados da federação com suas respectivas idiossincrasias, e na contramão de uma tendência global, que é justamente de reestatização impulsionada pelas más experiências de privatização em todo o mundo.
Os remendos de uma miscelânea de decretos federais editados no Governo Jair Bolsonaro (10203/2020, 10430/2020, 10588/2020, 10710/2021, 11030/2022) foram incapazes de atrair a esperada segurança jurídica, imprescindível ao objetivo maior da – então – novel legislação: a universalização dos serviços.
O papel das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESB), necessário a esse objetivo, seguia indevidamente nebuloso, especialmente no que dizia respeito à possibilidade de contratação direta em ambiente regionalizado. Indevidamente, pois houve um grande esforço político, alavancado pelo grande lobby privatista, para ocultar ou ignorar toda uma construção constitucional prévia que resguarda o papel das CESB enquanto executoras das políticas de saneamento dos seus respectivos Estados.
Ainda que prescindível, o Governo Lula voltou os holofotes ao tema com a edição do Decreto 11467, em 5 de abril de 2023, que se somava ao Decreto 11466, este centrado nas metodologias atinentes à comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores. Em seu art. 2º, inciso I, o Decreto 11467 dispunha que o titular poderia prestar os serviços públicos de saneamento básico diretamente, por meio de órgão de sua administração direta, ou por autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista integrante de sua administração indireta. Já o art. 6º, §§ 16 e 17, reconhecia ainda mais expressamente que na prestação regionalizada (regiões metropolitanas, microrregiões ou aglomerações urbanas), uma vez aprovado pela entidade de governança interfederativa, as entidades integrantes da administração do respectivo Estado poderiam prestar os serviços mediante modalidade que estaria equiparada à prestação direta e condicionada a uma série de formalidades e disposições legais estampadas no parágrafo 17.
Titulares, de acordo com o art. 8º, incisos I e II, da Lei 11445/2007 (redação dada pela Lei 14026/2020), são o Município e o Distrito Federal no caso de interesse local, mas também o Estado no caso do compartilhamento operacional em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, na esteira do que já havia sedimentado o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1842.
Esse holofote causou um furor parlamentar, em um Congresso Nacional que segue majoritariamente associado às pautas privatizantes, e foi uma oportunidade de medição de forças políticas entre Parlamento e Executivo. Nasceram, assim, e em evidente excepcionalidade da relação entre poderes, vários Projetos de Decreto Legislativo que seriam aglutinados no PDL 98/2023. Um dos focos, foi justamente a sustação dos anunciados parágrafos 16 e 17 que eram a expressão regulamentar da contratação direta das CESB.
Aprovado na Câmara dos Deputados em 3 de maio de 2023, o PDL 98/2023 seguiu, tramitando em regime de urgência, para o Senado Federal, com realização de audiência “pública” em 13 de junho (com a possibilidade de intervenção apenas do Governo Federal e dos parlamentares) e com a avocação da relatoria pelo Senador Confúcio Moura, presidente da Comissão de Serviços de Infraestrutura. Sucede que, mesmo sem o parecer final da relatoria, o Presidente do Senado, Senador Rodrigo Pacheco, decide por pautar o PDL para 11 de julho, como prazo final para que o Executivo apresentasse solução alternativa ou, então, enfrentasse a incerta correlação de forças em votação no Senado.
Nessa data, após negociação e diante de uma virtual derrota política, houve a retirada de pauta com o compromisso de apresentação de novo decreto federal regulamentador. Em 12 de julho, o Governo Federal, por fim, edita os Decretos Federais 11598 e 11599, que reproduzem, quase que em sua totalidade, os textos dos Decretos Federais 11466 e 11467, impondo a perda do objeto do PDL. Dentro desse cenário, o que ocorre é que, no que concerne à contratação direta das CESB, o Decreto 11599 não repete aquelas disposições dos parágrafos 16 e 17 do art. 6º do Decreto 11467, acudindo as expectativas do “grande público”, ainda coberto pela incompreensão de que o tema responde, antes de tudo, à Constituição Federal.
É impossível, em sede regulamentadora de lei federal, anular uma conjuntura legal e constitucional que defere papel diverso à participação das CESB. Essa “conjuntura”, é essencialmente constituída pelas seguintes disposições: (i) art. 8º, II, da Lei 11445/2007 (incluído pela Lei 14026/2020), que reconhece a cotitularidade do Estado em ambiente regional; (ii) art. 24, VIII, da Lei 8666/93, que dispensa a licitação na aquisição de serviços prestados pelas CESB criadas para o fim específico da contratação anteriormente à vigência dessa lei; (iii) art. 23, IX, da Constituição Federal, que estabelece a competência comum em saneamento; (iv) art. 175 da Constituição Federal, que dispõe sobre a prestação direta na prestação dos serviços públicos, que também pode ser realizada mediante gestão associada nos termos do art. 241; (v) decisões do Supremo Tribunal Federal, que cristalizou a posição pela cotitularidade no julgamento da ADI 1842.
Essa engenharia normativa é fruto de uma incapacidade legislativa – ou desinteresse – de enfrentar abertamente o tema; não é possível, insista-se, por meio de decretos se demover os princípios estabelecidos em lei e na Constituição Federal. A complexidade, aliás, não encerra aí, pois a contratação das CESB por dispensa de licitação enfrentará também outras relevantes questões, como a problemática relativa ao modelo de regionalização possível de ser implementado em cada Estado, a lei de criação da CESB e as alterações estatutárias posteriores (como eventual participação privada majoritária), e as demais condições mantidas nos atuais decretos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira. A ver, ainda, a necessária atualização do olvidado Decreto Federal 7217, de 21 de junho de 2010, que regulamenta o texto original da Lei 11445/2007.
Se desbastarmos a queda de braço pelo poder político, que emoldurou a tramitação do tema, e permitirmos que todos os atores possam contribuir nas soluções futuras (as representações sindicais e sociais do setor vêm sendo alijadas do processo), será possível avançarmos com seriedade ao núcleo do debate, que consiste na universalização dos serviços aprazada pela Lei 14026/2020 para 2033, uma positiva ousadia que encontrou obstáculo na incompletude e na insuficiência técnica dessa norma.
O saneamento segue sendo um monopólio natural (conclusão prática) e um direito humano (conclusão jurídica) que merece, por essas características axiais, transparência, participação social, modicidade tarifária, políticas de subsídios e, por isso, ser timoneado pelo Estado (lato sensu), ainda que muito bem-vindas sejam as parcerias com o capital privado, com fontes verdadeiramente privadas, e resguardado o controle estatal.
*Haneron Victor Marcos – doutor em Gestão Pública e Governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em Gestão da Inovação (Emse/França) e procurador e conselheiro de administração representante dos empregados da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).
Leia também:
Análise dos decretos 11.598 e 11.599 sobre o saneamento – Nota Técnica