Artigo de Clarice Ferraz e Gustavo Teixeira*
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No último dia 15 de agosto, às 8h31, teve início um blackout que afetou 26 unidades federativas do país e mais de 29 milhões de pessoas. Poucos dias depois, foram registradas novas falhas no abastecimento de energia em cidades das regiões Nordeste e Sudeste. Já não podemos mais falar de problemas isolados e momentâneos. Estes episódios expressam uma questão que será cada vez mais frequente, o que ameaça o crescimento econômico, a retomada da atividade industrial e coloca em risco a segurança dos brasileiros.

Mas o que está por trás destes incidentes e de outros que, provavelmente, virão?

A integridade operativa do sistema elétrico brasileiro tem sido negligenciada. O advento das energias renováveis traz desafios muito importantes para a operação do sistema. Surgem grandes parques eólicos e solares fotovoltaicos, projetos de geração de hidrogênio e de geração offshore, e consumidores se tornam geradores. O sistema se pulveriza, enquanto aumenta a ocorrência de eventos climáticos extremos.

A complexidade é enorme. Há uma revolução tecnológica em curso que deve ser acompanhada de aumento de flexibilidade e de coordenação para lidar com o crescimento da volatilidade, da imprevisibilidade, e da perda de inércia do sistema, características das chamadas energias renováveis. Mais do que nunca é preciso planejar e
estruturar a expansão do sistema.

Em realidade, desde a adoção do modelo mercantil no final dos anos 1990, vivemos e sofremos com a falta de planejamento. Assistimos a uma fragmentação acentuada das tomadas de decisão, assim como das responsabilidades dos agentes. A crescente dificuldade de operação diante da participação cada vez maior de energias renováveis e variáveis é agravada pela fragmentação do setor, que se mostra essencialmente ineficaz, pois contraria a natureza do setor que é sistêmica. Todas as partes estão interconectadas e se afetam.

A gravidade do apagão de agosto assim como as falhas que levaram à demora no restabelecimento do abastecimento expuseram um sistema fragilizado e vulnerável. Os documentos divulgados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em 25 de agosto e em 26 de setembro sobre o incidente mostram que equipamentos
reguladores de tensão de geradores eólicos e fotovoltaicos não funcionaram e não foram capazes de estabilizar a frequência. A lista de problemas que se seguiram e aumentaram a gravidade do incidente impressiona.

A análise das causas da demora do religamento também revela uma série de problemas – de falta de pessoal capacitado e conhecedor dos protocolos indispensáveis a operação segura do sistema, a problemas de infraestrutura básica. O ONS relata que houve “muitas solicitações de orientação nas ações de restabelecimento que deveriam ser
fluentes”, “falha de supervisão em diversas instalações”, “falha em canais de comunicação com os agentes” e “necessidade de uso de canais de comunicação alternativos não supervisionados (telefones celulares)”, entre outros. A análise deixa claro porque não basta ter os reservatórios cheios para garantir a segurança de abastecimento do
setor elétrico. O blackout de agosto se deu em cenário de excesso de geração, ao contrário dos incidentes do passado que ocorriam sobretudo em períodos de grande estiagem ou por incidentes climáticos.

Pior, o elevado risco de novos apagões, se nenhuma medida estrutural for adotada, é apenas uma das questões que gera insegurança elétrica no Brasil. Segurança energética se discute por dois vieses: do abastecimento físico e da capacidade de pagamento de tarifas da população e do setor produtivo nacional. De acordo com a Agência Internacional de Energia, o Brasil tem a quarta tarifa de energia elétrica mais cara dentre 140 nações pesquisadas. Se forem retirados da lista os países que sofrem diretamente influência da guerra entre Rússia e Ucrânia, subimos para a primeira posição no ranking. Holanda, Itália e Alemanha, os três primeiros colocados têm as contas da maioria de
seus consumidores residenciais e da indústria subsidiadas pelos governos locais, a despeito do impacto nas contas públicas.

A tendência no Brasil, no entanto, é de novos aumentos das contas de energia em um mercado já sufocado, além dos reajustes já anunciados no final de setembro. No Amapá, que sofre constantemente com má qualidade do serviço, o aumento anunciado foi de 44%, o que provocou uma onda de indignação e de protestos contra a Aneel. Estudo que acaba de ser divulgado pela Serasa mostra que enfrentamos hoje recorde de inadimplência nas contas dos chamados
serviços essenciais: 25% das dívidas pendentes são de luz, água, gás ou telefone. A falta de coordenação no setor elétrico nacional tende a agravar o problema, e estamos diante de um verão que se anuncia com temperaturas recordes e tempo seco.

O governo brasileiro tem procurado assumir o protagonismo internacional na questão da sustentabilidade, em consonância com o debate atual que exige olhares voltados para a proteção do meio ambiente diante da urgência climática. No entanto, a ausência de coordenação entre as diferentes instituições e agentes atuantes no
setor compromete o acesso da população ao serviço essencial, assim como as decisões de investimento no setor produtivo, com maior impacto para a indústria.

O governo precisa deixar claro qual é a sua política energética, pois o sucesso das medidas anunciadas para a reindustrialização e para a transição energética justa do país depende em grande medida da capacidade de coordenação do Estado. Uma transição energética justa demanda que a necessária incorporação das fontes de energia renováveis seja acompanhada de investimentos para garantir um sistema elétrico robusto, com tarifas acessíveis. A discussão internacional se dá em torno de um trilema que envolve segurança física, acesso financeiro e sustentabilidade que viabilize as estratégias de crescimento e transformação da indústria, alinhada às metas de
descarbonização que vêm sendo adotadas ao redor do mundo.

Temos chance. O Brasil ainda é o país com as melhores dotações de recursos estratégicos para enfrentar essa crise, mas é preciso que haja maior envolvimento do Estado na sua gestão. É responsabilidade do governo garantir nossa segurança de abastecimento. Podemos tirar muitas lições do Relatório de Análise de Perturbação – divulgado pelo ONS em 26 de setembro. Sua leitura deveria suscitar um debate amplo e profundo na sociedade sobre a estrutura de governança do setor elétrico, sobre como se dará a operação do sistema com maior participação de renováveis e sobre os elementos necessários para desenvolver uma estratégia de transição energética justa, em sinergia
com os objetivos da política de redinamização da indústria do país.

*Clarice Ferraz e Gustavo Teixeira são diretores do Ilumina – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico

Artigo publicado originalmente no jornal Valor, em 16/10/2023