Artigo: Lucas Tonaco*
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A Rússia é o maior país do mundo em extensão territorial, com aproximadamente 17,1 milhões de quilômetros quadrados, e possui uma população de cerca de 146,8 milhões de habitantes, sendo o nono país mais populoso do planeta. Seu território abrange vastas áreas de planícies e montanhas, sendo cortado por importantes rios, como o Rio Volga (o maior da Europa) e o Rio Yenisei, além de contar com extensos sistemas de lagos, como o Lago Baikal, o mais profundo do mundo. Em termos de doutrina militar a doutrina de 2010 afirma que a Rússia “deve proteger seus interesses nacionais vitais no domínio da água, incluindo a segurança de seus recursos hídricos, a proteção do meio ambiente e a prevenção de conflitos relacionados à água” é a “Doutrina Militar da Federação Russa” de 2010 segundo o próprio Ministério da Defesa da Rússia. A declaração específica sobre a água está no parágrafo 2.2, que trata da “Segurança Nacional Russa”.

É importante lembrar primeiro do sistema soviético, pois antecede a atual configuração de Estado russa, começando pelo arcabouço legal: o sistema de leis sobre a Água: Durante o período da União Soviética, o sistema de leis relacionadas à água era regido por uma legislação abrangente que visava a gestão e proteção dos recursos hídricos. A principal legislação a esse respeito era a “Lei da Água da União Soviética”, promulgada em 1930. Essa lei estabeleceu os princípios fundamentais de gerenciamento da água no país e continha 43 artigos detalhados que abordavam questões como direitos de uso da água, proteção contra a poluição e regulamentação de obras hidráulicas. Instituições relacionadas à água: O sistema de gestão dos recursos hídricos na União Soviética era conduzido por uma série de instituições especializadas. A mais importante delas era o “Comitê Estatal da Água”, criado em 1930, responsável por coordenar a implementação das políticas e diretrizes estabelecidas pela Lei da Água. O Comitê contava com um quadro significativo de funcionários altamente capacitados, atingindo cerca de 12.000 membros em suas várias unidades regionais. Além disso, também existiam instituições de pesquisa e estudos acadêmicos dedicadas à hidrologia e ciências ambientais, como o “Instituto de Hidrometeorologia e Ecologia”, que recebia recursos significativos para a realização de pesquisas e projetos relacionados à gestão dos recursos hídricos. Nos tempos atuais, o sistema de leis sobre a água na Rússia é regido principalmente pela “Lei da Água da Federação Russa”, promulgada em 3 de junho de 2006. Essa legislação é composta por 9 seções e 53 artigos, que abrangem diversas questões relacionadas à gestão, proteção e uso dos recursos hídricos no país. A Lei da Água visa garantir a sustentabilidade e a proteção ambiental dos corpos d’água, estabelecendo direitos e responsabilidades para a administração dos recursos hídricos, o controle de poluição e a exploração racional dos rios e lagos russos. Ela também regulamenta a concessão de permissões para atividades que afetam as águas, como construção de usinas hidrelétricas, obras de dragagem e captação de água para fins industriais e agrícolas. A gestão dos recursos hídricos na Rússia é realizada por várias instituições, sendo a mais importante delas o “Serviço Federal de Recursos Hídricos” (Rosvodresursy), criado em 2004. Essa agência governamental é responsável pela implementação das políticas de gestão de água no país e supervisiona a aplicação da Lei da Água. Quanto aos recursos financeiros e funcionários, estudos acadêmicos indicam que o orçamento destinado ao Rosvodresursy varia anualmente, mas em 2021, por exemplo, foram alocados cerca de 11,8 bilhões de rublos (aproximadamente 163 milhões de dólares) para a agência. O número de funcionários também pode variar, mas, em 2021, estima-se que o Serviço Federal de Recursos Hídricos contava com cerca de 30.000 funcionários, entre especialistas em recursos hídricos, engenheiros e pessoal administrativo, atuando em níveis central e regional para garantir a gestão adequada e sustentável dos recursos hídricos na Rússia.

No que cerne aos aspectos hidrográficos e econômicos o rio Volga é o maior e mais importante rio da Europa, com cerca de 3.690 km de extensão. Sua bacia hidrográfica abrange uma área de aproximadamente 1,35 milhão de quilômetros quadrados, atravessando diversos estados da Rússia. A hidrovia formada pelo Volga é de extrema importância para o transporte fluvial e a economia da região, conectando várias cidades e proporcionando acesso ao Mar Cáspio e, consequentemente, ao comércio internacional. De acordo com estudos acadêmicos, o sistema hidroviário do Volga transporta milhões de toneladas de carga anualmente, contribuindo significativamente para a economia russa. Questões culturais e etnias ao longo do Rio Volga: O Rio Volga é rodeado por uma rica diversidade cultural, abrigando diferentes etnias ao longo de suas margens. Em particular, a região do Volga é habitada por grupos étnicos como os russos, tártaros, chuvashes, mari, mordvinos e muitos outros. Cada uma dessas comunidades possui suas tradições, línguas e costumes únicos, o que contribui para a riqueza cultural da região. As etnias que vivem ao longo do Volga têm uma relação profunda com o rio, com muitas de suas tradições e atividades cotidianas fortemente associadas às águas do rio, seja na pesca, agricultura ou em rituais religiosos. O Rio Volga também foi palco de conflitos históricos. Um dos episódios mais relevantes foi a chamada “Revolta do Volga”, ocorrida entre 1920 e 1921, durante a Guerra Civil Russa. A revolta foi liderada pelos camponeses e teve como principal causa a insatisfação com as políticas do governo bolchevique. Relatórios acadêmicos apontam que a revolta resultou em violentos confrontos entre os rebeldes e o exército soviético, com repercussões significativas na região. Além disso, ao longo dos anos, questões relacionadas ao uso dos recursos hídricos do Volga também têm gerado tensões e disputas entre diferentes regiões e grupos interessados, embora com menor intensidade em comparação a eventos históricos como a Revolta do Volga. Na Rússia, um outro conflito hídrico significativo é a disputa em torno do rio Amu Dária, que ocorreu entre a Rússia e os países da Ásia Central na década de 1990. O rio Amu Dária é um importante curso d’água que atravessa vários países, incluindo o Turcomenistão, Uzbequistão e Afeganistão. As dores sofreram devido ao uso e à distribuição das águas do rio para irrigação e abastecimento de água potável.Estudos acadêmicos, como o de Vorosmarty et al. (2000), intitulado “Global Water Resources: Vulnerability from Climate Change and Population Growth”, abordam as questões de segurança hídrica na Rússia, considerando as mudanças climáticas e o crescimento populacional.Além disso, a geopolítica desempenha um papel importante nas relações entre a Rússia e seus países vizinhos, afetando a cooperação e como econômica em relação ao uso compartilhado dos recursos hídricos.Estudos acadêmicos, como o mencionado de Vorosmarty et al. (2000), fornece uma base de conhecimento para compreender e lidar com os desafios da segurança hídrica na Rússia.

O sistema de abastecimento de água na Rússia é predominantemente gerenciado por empresas estatais. Uma das principais companhias responsáveis pelo fornecimento de água é a “Mosvodokanal”, que atende a capital, Moscou. Ela é uma empresa estatal de propriedade do governo municipal de Moscou e fornece água potável e serviços de saneamento para cerca de 12 milhões de pessoas, atendendo a quase 100% da população da cidade. Além disso, a empresa “Petersburg Vodokanal” é outra referência no setor, fornecendo serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto para São Petersburgo e regiões adjacentes, atendendo a uma população de aproximadamente 5 milhões de pessoas. A “Petersburg Vodokanal” também é uma empresa estatal, sendo responsável por mais de 99% do fornecimento de água na região. Ao longo da história, houve alguns conflitos relacionados às companhias de água na Rússia, particularmente em relação a questões de tarifas e qualidade dos serviços. Esses conflitos muitas vezes ocorreram em contextos locais, envolvendo protestos e insatisfações da população com o fornecimento e o tratamento de água.

As mudanças climáticas têm causado impactos significativos na disponibilidade e qualidade da água na Rússia. Um fenômeno relevante é o aumento da temperatura média em todo o país, resultando em um acelerado derretimento do permafrost, camadas permanentemente congeladas do solo, na região da Sibéria. Relatórios do Centro Hidrometeorológico Russo indicam que a taxa de derretimento do permafrost aumentou mais de 20% desde o início dos anos 2000, resultando em instabilidade no solo e colapso de infraestruturas, incluindo sistemas de abastecimento de água e esgoto. Além disso, o derretimento das calotas polares e geleiras nas regiões árticas tem contribuído para o aumento do nível dos oceanos e da água doce nos rios, com potenciais impactos na dinâmica fluvial e na disponibilidade de água para o consumo humano, agrícola e industrial. Projeções climáticas apontam para um futuro em que as mudanças climáticas continuarão a afetar a questão da água na Rússia de forma significativa. Segundo o Relatório Nacional de Mudanças Climáticas da Rússia (2018), é esperado que as temperaturas continuem a subir em todo o país, levando a um derretimento ainda maior do permafrost na região siberiana. As projeções também sugerem um aumento na frequência e intensidade de eventos extremos, como secas e inundações. A escassez e degradação da água podem impactar a agricultura, com potencial redução da produtividade de culturas como trigo e batata, que são fundamentais para a segurança alimentar do país. Além disso, a diminuição das reservas de água doce e o aumento da competição por recursos hídricos podem criar tensões socioeconômicas e políticas entre diferentes regiões, afetando a estabilidade do país.

Água e Inteligência na Rússia

O sistema de inteligência e segurança nacional na Rússia é amplamente controlado pelo Serviço de Segurança Federal (FSB), que é o principal órgão de inteligência e contraespionagem do país. Além do FSB, outras agências desempenham um papel importante, como o Serviço de Inteligência Estrangeira (SVR) e o Serviço Federal de Proteção (FSO). As atividades de inteligência são regulamentadas por leis como a Lei Federal “Sobre o Serviço de Segurança Federal” e a Lei Federal “Sobre a Inteligência”. Essas leis fornecem o enquadramento legal para as operações de inteligência e proteção dos interesses nacionais da Rússia. Em termos de preparação para as mudanças climáticas e questões relacionadas à água, a Rússia tem demonstrado interesse em abordar essas questões por meio de seus órgãos de inteligência e segurança nacional. O documento oficial “Estratégia de Segurança Nacional da Federação Russa até 2020” inclui a abordagem de questões ambientais, destacando a necessidade de proteger os recursos naturais e combater a poluição. Além disso, o “Plano Nacional de Ação para Adaptação às Mudanças Climáticas em 2022”, desenvolvido pelo governo russo, visa melhorar a resiliência do país em relação aos impactos das mudanças climáticas, incluindo questões hídricas.

Guerra na Ucrânia e a água

Antes mesmo dos acontecimentos recentes relativos a guerra na Ucrânia, um dos últimos conflitos importantes na região é uma disputa em torno da Península da Crimeia e do rio Dnieper. Após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, a Ucrânia perdeu o controle sobre importantes fontes de água, incluindo o rio Dnieper, que abastecia a região. Essa disputa tem causado tensões entre a Ucrânia e a Rússia. A Ucrânia tem implementado exercícios de inteligência e ações controladas para garantir a segurança hídrica. Estudos acadêmicos, como o de Shkaratan et al. (2020), intitulado “Water Security in Ukraine: Assessment and Policy Recommendations”, abordam questões específicas de segurança hídrica na Ucrânia, análises e recomendações para aprimorar a gestão e a segurança dos recursos hídricos.A Lei da Água da Ucrânia estabelece o quadro legal para a gestão dos recursos hídricos no país. Instituições como o Ministério da Ecologia e Recursos Naturais e a Agência Estatal da Água desempenham papéis importantes na implementação das políticas e regulamentações relacionadas à água. Além disso, a geopolítica desempenha um papel importante nas relações entre a Ucrânia e a Rússia, especialmente em disputas relacionadas aos recursos hídricos compartilhados.

Mais recentemente com relação a recente “Guerra na Ucrânia”, destaca-se O conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia teve um impacto significativo nos recursos hídricos e na infraestrutura hídrica da região. O estudo “Impacto do conflito armado Rússia-Ucrânia nos recursos hídricos e infraestrutura hídrica”, controlado por Oleksandra Shumilova, Klement Tockner, Alexandre Sukhodolov, Valentyn Khilchevskyi, Luc De Meester, Sergiy Stepanenko, Ganna Trokhymenko, Juan Antonio Hernández-Agüero e Peter Gleick , abordando exatamente esses efeitos de um conflito com respectivas questões hídricas. O estudo revela que durante o conflito armado, a infraestrutura hídrica foi danificada e os recursos hídricos foram afetados por várias maneiras. As atividades militares resultaram na destruição de estações de tratamento de água, redes de distribuição e instalações de armazenamento. Isso levou à interrupção do fornecimento de água potável para comunidades e afetou a qualidade da água disponível.Além disso, o estudo destaca que o controle estratégico dos recursos hídricos foi utilizado como uma arma durante o conflito. A interrupção intencional do fornecimento de água por parte das partes envolvidas agravou ainda mais a situação humanitária e as condições de vida da população sob observação. Os impactos do conflito também se estenderam aos ecossistemas aquáticos. A contaminação da água devido a derramamentos de produtos químicos e combustíveis, bem como a destruição de habitats naturais, afetaram a biodiversidade e a saúde dos ecossistemas aquáticos. O estudo destaca a importância de abordar urgentemente esses desafios e restaurar a infraestrutura hídrica danificada para garantir o acesso à água potável e preservar os ecossistemas aquáticos. Além disso, enfatizar a necessidade de cooperação e interação entre as partes envolvidas para resolver questões relacionadas aos recursos hídricos de forma sustentável e sustentável. Este estudo fornece uma análise abrangente dos impactos do conflito armado na Rússia e Ucrânia em relação aos recursos hídricos e infraestrutura hídrica, oferecendo insights valiosos para compreender a extensão dos desafios enfrentados e a importância de ações para garantir a segurança hídrica e a sustentabilidade a longo prazo.

Outro acontecimento relevante do prismo de conflitos hídricos ou relacionados, é a o bombardeio da barragem de Nova Kakhovka, na Ucrânia, em 6 de junho de 2023, teve implicações hidrológicas, geopolíticas e militares. Do ponto de vista hidrológico, o bombardeio causou o vazamento de cerca de 100 milhões de metros cúbicos de água, inundando cerca de 100 mil hectares de terras agrícolas. O vazamento de água também causou a destruição de infraestruturas e o deslocamento de pessoas. Um relatório do Serviço de Emergência do Estado da Ucrânia estimou que o vazamento de água da barragem de Nova Kakhovka causou danos de cerca de US$ 100 milhões. Um relatório da Organização das Nações Unidas estima que o vazamento de água da barragem de Nova Kakhovka afetou cerca de 100 mil pessoas. Um relatório do Banco Mundial estima que o bombardeio terá um impacto econômico negativo de cerca de US$ 1 bilhão na Ucrânia.Do ponto de vista geopolítico, o bombardeio da barragem de Nova Kakhovka aumentou a tensão entre a Rússia e a Ucrânia, pois a barragem é uma infraestrutura crítica para a Ucrânia. A barragem de Nova Kakhovka é responsável por gerar cerca de 20% da energia elétrica da Ucrânia e por irrigar cerca de 25% das terras agrícolas do país. O bombardeio da barragem pode ter um impacto significativo na economia e na segurança nacional da Ucrânia. Do ponto de vista militar, o bombardeio da barragem de Nova Kakhovka pode ser usado como uma arma para prejudicar a economia e a infraestrutura da Ucrânia. Houve inundações em larga escala, afetando a agricultura e a vida selvagem. O bombardeio também pode cortar o fornecimento de energia elétrica e água para a Ucrânia.O bombardeio da barragem de Nova Kakhovka é um lembrete da importância da água como recurso estratégico. A água é essencial para a vida, a agricultura e a indústria. O bombardeio da barragem de Nova Kakhovka mostra como a água pode ser usada como arma e como a segurança da água é um fator importante na segurança nacional.

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU, dirigente do Sindágua-MG, acadêmico em Antropologia Social e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

 


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