O engenheiro sanitarista Marcos Helano Montenegro, coordenador de comunicação do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e diretor nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), alerta: as concessões dos serviços públicos de abastecimento de água que vêm sendo estruturadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são verdadeiras bombas relógio. Montenegro questiona, nesta entrevista, porque insistir em Sergipe com um modelo que já mostrou problemas em Alagoas e no Rio de Janeiro.
Quais são as características principais desse modelo de concessão?
Montenegro: O modelo adotado pelo banco estatal seleciona a empresa vencedora pelo maior preço de outorga, ou seja, a empresa que oferece maior quantia ao governo para adquirir o direito de explorar os serviços de distribuição de água e esgotamento sanitário. Neste modelo, a empresa pública estadual, no caso de Sergipe a DESO, fica com a captação de água bruta e a produção de água tratada no atacado. Água tratada que será vendida à concessionária que vai distribui-la ao usuário final.
Um problema grave é que não estão claros os critérios que foram adotados para definir o preço a ser pago à empresa estatal pelo metro cúbico de água fornecido à concessionária. Há um evidente risco, não mensurado, de a empresa estadual se tornar deficitária e o Tesouros Estadual, ou melhor o contribuinte, ter de bancar o déficit para não inviabilizar a prestação de um serviço essencial.
As concessões destes serviços no Rio de Janeiro e na vizinha Alagoas não estão funcionando bem, com diversos episódios graves de falta de água, majoração de tarifas e muita insatisfação da população. E é esse modelo que está sendo adotado na licitação que o governo estadual com o apoio do BNDES pretende promover em Sergipe.
Por que o BNDES aposta neste modelo?
Montenegro: Essa é a questão central. É preciso avaliar a solidez desse modelo que o BNDES vem estruturando desde 2016. O BNDES, por meio de consultorias privadas que contrata, participa ou participou de modelagens desse tipo em Alagoas, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia e agora Sergipe, e também nos municípios de Arapiraca, em Alagoas (AL) e Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
No caso dos estados de Alagoas e do Rio de Janeiro e, agora, de Sergipe, optou-se por um modelo de concessão parcial, em que apenas os serviços no varejo foram concedidos. Como já disse, os serviços no atacado, ou seja, a produção e tratamento da água no atacado, ficaram sob responsabilidade da empresa estadual. O maior problema é que, talvez para atrair empresas interessadas, foi adotado preço ou tarifa para essa fase de atacado aparentemente sem fundamento em qualquer estudo técnico ou econômico.
Dessa forma a DESO, de Sergipe, hoje uma empresa lucrativa, pode ser empurrada para uma situação de insolvência, o que pode colocar em risco os investimentos tanto da fase de atacado quanto da fase de varejo. Chamo atenção que a divisão de riscos entre o Estado, a concessionária privada e a DESO está totalmente desequilibrada com a DESO arcando com a maioria deles, inclusive com o de escassez de água por estiagens prolongadas.
Você quer dizer que a DESO pode deixar de ter recursos suficientes para se manter?
Montenegro: Exatamente. A modelagem do “negócio” prevê que a DESO fica apenas com a receita da venda da água no atacado. Com esta receita, a estatal tem que fazer face às despesas operacionais de produção de água (especialmente pessoal técnico, energia elétrica e produtos químicos), amortização e juros de financiamentos das infraestruturas que agora serão entregues à concessionária e mais a manutenção das instalações de produção de água tratada e os investimentos de atualização, modernização e ampliação destas instalações.
A ausência de critérios técnicos para o cálculo da tarifa de atacado coloca em risco o cumprimento dessas obrigações anteriores, bem como a manutenção adequada do serviço de produção da água bruta.
No caso de Sergipe, a DESO possui débitos decorrentes de operação de financiamento com o Banco do Nordeste do Brasil que no balanço de dezembro de 2022 chegavam a R$ 67 milhões. E, ainda, débitos previdenciários e fiscais parcelados com a União que chegavam a R$ 29 milhões no mesmo ano.
Com as receitas que a DESO tem atualmente, essas dívidas não são um problema. Porém, no novo modelo de concessão, os riscos para o interesse público são elevados, porque não é possível avaliar se as tarifas referentes às atividades de água no atacado condizem com o custo efetivo do serviço e com a adequada remuneração da prestadora. Ou seja, a falta de transparência não permite dizer se o modelo proposto pelo BNDES é sustentável, se vai gerar prejuízo ao prestador, o que vai exigir recursos públicos para garantir a continuidade da produção e água para a concessionária vender no varejo.
E como ficam os serviços municipais de água e esgoto de Capela, Carmópolis, Estância e São Cristóvão?
Montenegro: Esse é outro passivo dessa modelagem. Vamos pegar o caso de Alagoas. Com a concessão, os serviços antes prestado pelos serviços municipais de abastecimento de água e esgoto, os SAEES, passaram a ser prestados pela concessionária. Mas esses órgãos continuaram existindo, prestando outros serviços, até porque seus servidores, geralmente, são detentores de estabilidade. Esses órgãos se tornaram despesa permanente, sem contar com o recurso das contas pagas pelos cidadãos e sem qualquer planejamento financeiro ou orçamentário. O mesmo pode acontecer nestes quatro municípios sergipanos.
O que deve ser feito?
Montenegro: É evidente que o BNDES precisa repensar sua atuação. Os caminhos da universalização não passam necessariamente pela privatização dos serviços. O Banco estatal poderia apostar em uma linha de apoio à modernização dos prestadores públicos e identificar os obstáculos ao financiamento da expansão dos serviços que presta.
Quanto a Sergipe, é preciso não esquecer que a DESO comprovou junto à Agência Reguladora estadual capacidade econômico-financeira para promover a universalização do atendimento. Não seria melhor apostar que ela pode ser mais eficiente, promovendo um programa de desenvolvimento institucional arrojado e inovador, focado na qualidade dos serviços entregues ao usuário final e no atendimento efetivo da população de baixa renda com tarifa social adequada?
Rifar a companhia estadual não é a melhor opção. Existem diversas alternativas que precisam ser avaliadas e comparadas, inclusive a de parceria público-privada parcial, promovendo o esgotamento sanitário em alguns municípios de porte médio. O governador de Sergipe precisa ser lembrado que a Lei Nacional de Saneamento Básico preconiza a participação da sociedade nos processos de formulação das políticas e do planejamento dos serviços públicos de saneamento básico.
Gostaria, antes de terminar, de lembrar que o próprio presidente Lula tem manifestado sua posição contrária à privatização de serviços públicos essenciais. Nada mais essencial para a saúde pública e para a salubridade ambiental que os serviços públicos de água e esgoto.
Reprodução da entrevista concedida ao blog Gleice Queiroz em 7/4/24