Em artigo publicado na última quarta-feira (24/07), Abelardo Filho, ex-presidente da Embasa, abordou sobre as questões jurídicas entorno da prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Salvador, segundo as quais o prefeito Bruno Reis não poderia, de forma isolada, decidir pela privatização desses serviços públicos essenciais. Além disso, ele argumenta que Salvador tem um dos maiores índices de cobertura de água e esgoto do País e já cumpriu a meta de universalização, portanto a justificativa da privatização para o cumprimento dessas metas é incoerente.

SOBRE A MIP E A CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARA FAZER A MODELAGEM ECONÔMICO-FINANCEIRA E JURÍDICA PARA CONCESSÃO OU PPP DOS SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO DE SALVADOR

Abelardo de Oliveira Filho

Engenheiro civil aposentado com especialidade em engenharia sanitária ambiental. Foi empregado da Embasa durante 44 anos. Foi Secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades (2003-2007). Foi Presidente da Embasa (2007-2015); Foi Conselheiro e Vice-Presidente do Conselho de Administração da Embasa (2007-2015). Foi Conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento -ONDAS (2019-2022); foi professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo Municipal das Universidade Católica de Salvador – UCSal (2018-2022) e, por fim, foi Conselheiro do Conselho de Administração da Embasa eleito pelos empregados(as) da empresa durante dois mandatos (2018-2022).

1. ANTECEDENTES

A Embasa opera os serviços em Salvador desde a sua criação em 1971, por conta do termo do acordo, em vigor, firmado em 26 de agosto de 1925 entre o Estado da Bahia e o Município de Salvador, devidamente autorizados pela Lei estadual n.º 1.811, de 29 de julho de 1925, e pela Lei municipal n.º 1.114, de 29 de julho de 1924 em que o município transferiu ao Estado a gestão e administração dos serviços de água e esgoto, incluindo a subordinação imediata ao Estado de todo o pessoal administrativo e operários empregados na prestação dos serviços.

Em 5 de junho de 1929, o Governo do Estado da Bahia, amparado na Lei estadual n.º 2.064, de 14 de maio de 1928 e o Município do Salvador, fundamentado na Lei municipal n.º 1.182, de 12 de maio de 1929, assinaram novo acordo ratificando o acordo celebrado em 26 de agosto de 1925.

Trata-se, portanto de uma prestação direta dos serviços tendo em vista que a Embasa é uma empresa de economia mista, integrante da administração indireta do Estado da Bahia, com quase a totalidade das suas ações pertencem ao Estado. O Município de Salvador é integrante da Região Metropolitana de Salvador, juntamente com outros 12 municípios e tem os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário operados pela Embasa.

Os serviços prestados em Salvador são integrados e compartilhados com mais 08 municípios, sendo 06 integrantes da RMS (Simões Filho, Lauro de Freitas, Candeias, Madre de Deus, São Francisco do Conde e São Sebastião do Passe) 02 fora da RMS (Santo Amaro e Amélia Rodrigues).

A Embasa já cumpriu no Município de Salvador as metas de universalização estabelecidas na Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020, ao atingir 99% com abastecimento de água e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

É o que diz o censo demográfico 2022 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que aponta que Salvador é a capital mais bem saneada do Nordeste com melhores índices nos serviços de saneamento básico atingindo 99,56% dos moradores com abastecimento de água potável e 95,95% com coleta e tratamento dos esgotos domésticos. Ou seja: as metas estabelecidas na Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020 já foram cumpridas com folga em 2022.

A Prefeitura Municipal de Salvador (PMS) justificando a necessidade de cumprimento dessas metas, lançou a Manifestação de Interesse Privado (MIP) e, posteriormente autorizou uma empresa a fazer modelagem econômico-financeira e jurídica e estruturar o edital de licitações visando a concessão comum ou por meio de Parceria Público[1]privada (PPP) dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Salvador.

Resta claro que o objetivo da Prefeitura de Salvador é pura e simplesmente o de tentar privatizar os serviços, uma vez que as metas estabelecidas pelo Marco Regulatório de universalização já foram atendidas desde 2022 e Salvador tem um dos maiores índices de cobertura de água e esgoto do País. Portanto, não existe nenhum motivo para privatizar, tampouco fazer concessões ou mesmo PPP.

2. O MUNICÍPIO DE SALVADOR, ENQUANTO INTEGRANTE DE REGIÃO METROPOLITANA, NÃO TEM COMPETÊNCIA PARA DELIBERAR SOBRE A CONCESSÃO DOS SERVIÇOS

A PMS até pode contratar estudos para a modelagem de PPP ou de concessão, porém poderá jogar dinheiro fora, porque não tem competência para, de forma isolada, deliberar sobre a concessão, PPP ou qualquer outra forma de prestação de serviços de saneamento básico pelo fato de o município integrar a Região Metropolitana de Salvador e ser atendida por um sistema integrado e compartilhado com mais 08 outros municípios, não exerce a titularidade de forma isolada e sim de forma compartilhada entre o Estado e os municípios integrantes da RMS, conforme determina a Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020, que estabelece:

“Exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico (Art. 8º): o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum” (inciso II).

Como é possível observar, o Município de Salvador se enquadra no inciso II do art.8º. Portanto, não tem competência para deliberar, de forma isolada, sobre a concessão dos serviços ou qualquer outra forma de prestação de serviços de saneamento básico.

3. COMPETÊNCIA DO COLEGIADO METROPOLITANO PARA DELIBERAR SOBRE AS FORMAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

Conforme dito anteriormente, o Município do Salvador integra a Região Metropolitana de Salvador, a qual possui o regime jurídico e governança instituídos pela Lei Complementar nº 41, de 13 de junho de 2014, do Estado da Bahia.

A referida Lei complementar cria a entidade metropolitana da região metropolitana de salvador (EMRMS), autarquia intergovernamental de regime especial, com caráter deliberativo e normativo e personalidade jurídica de direito público (Art. 2° – Caput), dispondo sobre sua estrutura de governança e define que entre as funções de interesse comum, figuram os serviços públicos de saneamento básico (art. 2º, § 2º), e que compete à Região Metropolitana, por meio do Colegiado Metropolitano – formado pelos Prefeitos dos municípios metropolitanos e pelo Govenador do Estado da Bahia – “estabelecer a forma de prestação destes serviços” (art. 8º, caput, V, parte final). (grifos nossos).

Para não restar dúvidas, são também competência do Colegiado Metropolitano (Art. 8º) as seguintes ações: instituir diretrizes sobre o planejamento, a organização e a execução de funções públicas de interesse comum, a serem observadas pela Administração Direta e Indireta dos Municípios integrantes da Região Metropolitana e, II – deliberar sobre assuntos de interesse regional, em matérias de maior relevância, nos termos do Regimento Interno. (grifos nossos).

Entende o Jurista renomado Wladimir Ribeiro que “evidentemente estando o Município ou o Estado integrado à região metropolitana ou microrregião, o exercício das competências haverá que ser colegiado, na forma da legislação complementar estadual e do que orienta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente a derivada do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 1.842-RJ”.

Portanto, a competência para deliberar sobre a forma de prestação de serviços é da Entidade Metropolitana da Região Metropolitana de Salvador (EMRMS), por meio do seu Colegiado Metropolitano e não do Município de Salvador, de forma isolada. Segundo ainda, o jurista Wladimir Ribeiro, qualquer alteração da situação vigente, a exemplo de retomada dos serviços ou mudança de operador são necessários, além de lei, a prévia autorização do Colegiado Metropolitano. Ou seja, não basta o ato, isolado, do Município do Salvador. Inclusive, esta posição tem sido prestigiada pela jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal o qual, inclusive, anulou atos praticados de forma isolada por Município sem a prévia Autorização do colegiado interfederativo instituído por lei complementar estadual.

4. CONCLUSÕES

4.1. O Estado da Bahia é o gestor dos serviços de água e esgoto em Salvador, tendo em vista os termos do Acordo firmado entre o Município de Salvador e o Estado da Bahia, em 1925 e ratificado em 1929, onde o Município transfere ao Estado a gestão dos serviços.

4.2. O Município de Salvador, por ser integrante da Região Metropolitana de Salvador e ser abastecida por sistemas integrados e compartilhados com outros municípios pode até contratar empresas para fazer modelagem – não seria recomendável, pois vai jogar dinheiro fora – porém não tem competência para deliberar sobre a forma de prestação dos serviços.

4.3. A competência para deliberar sobre a forma da prestação dos serviços é da Entidade Metropolitana da Região Metropolitana de Salvador, por meio do Colegiado Metropolitano formado pelo Governador e os Prefeitos dos municípios que integram a região;

4.4. Para implantar a Concessão dos serviços por meio de concessão comum ou mesmo de PPP ou qualquer forma de prestação dos serviços nem o Município de Salvador, nem o Estado da Bahia, podem, de forma isolada, deliberar sobre essa questão. É necessário a autorização prévia do Colegiado Metropolitano.

4.5. Portanto, qualquer negociação relacionada à prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário que não passe pelo crivo do Colegiado Metropolitano não terá amparo legal, não só em relação à Lei 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020, bem como pelo Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015) e pela jurisprudência do STF (ADI 1842-RJ e 2077-BA).

4.6. O Município de Salvador já atendeu as metas de universalização previstas na Lei 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020, desde 2022. Portanto, realizar concessão ou mesmo PPP com esta finalidade não é justificável.

5. RECOMENDAÇÕES

5.1. Após a modelagem, caso a PMS resolva abrir o processo de licitação para a implantar concessão comum ou mesmo PPP, no município de Salvador, tendo em vista a sua incompetência para tal, o Governo do Estado deve adotar providências para impedir essa ação, seja por negociação ou até mesmo por ajuizamento de ação na Justiça.

5.2. Para resolver de uma vez por todas a questão da prestação dos serviços de água e esgoto em Salvador, o Governo do Estado deve adotar providências urgentes para a regionalização dos serviços, por prestação direta nos municípios da RMS, por meio da Região Metropolitana de Salvador, por deliberação do Colegiado Metropolitano, responsável pela governança da RMS, conforme dispõe a Lei 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020. Para isso deve contratar uma consultoria especializada para analisar os estudos de viabilidade econômico-financeira já elaborados pela Embasa, elaborar todo o planejamento para a implantação da regionalização e convocar o Colegiado Metropolitano da RMS para deliberar.

6. REFERÊNCIAS

1.BAHIA – Termo de Acordo firmado pelo Estado da Bahia e o Município de Salvador em 26 de agosto de 1925;

2.BAHIA – Termo de Acordo firmado em 05 de junho de 1929 ratificando o Termo de Acordo assinado em 26 de agosto de 1925;

3.BRASIL – IBGE – Censo Demográfico de 2022;

4.BRASIL – Lei Federal n.º 11.445, de 05 de janeiro de 2007;

5.BRASIL – Lei Federal n.º 14.026, de 20 de julho de 2020;

6.BRASIL – Lei n.º 13.089, de 12 de janeiro de 2015;

7.OLIVEIRA FILHO, Abelardo – “A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO NO BRASIL, APÓS ALTERAÇÕES NO MARCO LEGAL E REGULATÓRIO DO SANEAMENTO BÁSICO PELA LEI Nº 14.026/2020” publicado no Livro Gestão e Tecnologia de Saneamento Básico – Uma abordagem na Perspectiva Brasileira e Internacional – Escola Politécnica da UBFA e Instituto Politécnico de Milão – Itália. Editora Atena – 2022;

8.RIBEIRO, Wladimir António – Parecer sobre a prestação de serviços de Salvador pela Embasa – Salvador, Bahia – 2022

9.STF, Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-RJ. Redator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 06/03/2013. Publicação do Acórdão: 16/09/2013;

10.STF, Pleno. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade: ADI 2077 BA. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Redator para o Acórdão: Ministro Joaquim Barbosa. Julgamento: 06/03/2013. Publicação do Acórdão: 09/10/2014

Salvador, 24 de julho de 2024

Abelardo de Oliveira Filho