Lucas Tonaco*

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Em meio a teses de “modernização do estado” e “avanços”, o atual governo do Piauí na iminente privatização da Águas e Esgotos do Piauí (Agespisa) traz uma série de questões econômicas, sociais e legais que devem ser analisadas criticamente, principalmente por um estado tão árido, e que sofre com outras questões, a proposta, sob a administração do governador Rafael Fonteles, visa arrecadar R$ 1 bilhão, com o possível embasamento de enfrentar a crise financeira da empresa pública. Porém, essa decisão apresenta sérios riscos à população e há controversas absurdas com relação a princípios constitucionais e legais; e, no final das contas, a proposta parece não considerar no que tange ao direito à água como um bem público essencial.

Contexto econômico e social

A Agespisa atende cerca de 1,6 milhão de pessoas em 155 cidades e 22 povoados, desempenhando um papel crucial na vida dos piauienses, mesmo que em seu cerne absoluto, a crise financeira da empresa, com uma dívida superior a R$ 200 milhões, é frequentemente citada como razão para a privatização, pois parece ser uma retórica circular, mas ao ser bem analisado esse argumento vem a ignorar os efeitos negativos da transferência do controle sobre um recurso básico, humanitário e essencial como é água para empresas que têm como objetivo principal, o lucro criando uma espécie de contradição retórica.

Não faltam estudos para demonstrar que a privatização do saneamento em outras regiões do Brasil e no mundo, são absurdas, como por exemplo, o caso do Rio de Janeiro e Tocantins, que acabou mesmo resultando no aumento nas tarifas e falta de investimentos em áreas periféricas e rurais, a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) do Rio de Janeiro, se viu mesmo foi um aumento significativo nas tarifas, o que vem a afetar principalmente a população de baixa renda, com sérios problemas inclusive amplamente relatados na imprensa.

O caso do Piauí parece mesmo seguir o mesmo caminho, com a previsão de aumento de 16,5% nas tarifas de água e 80% nas tarifas de esgoto, conforme técnicos já apontam e é preciso inclusive uma observação especial a pesquisas, estudos e evidencias internacionais, como as realizadas pelo Transnational Institute (TNI) e o Corporate Europe Observatory (CEO), indicam que a ausência de transparência em processos de privatização tende a favorecer interesses privados, muitas vezes à custa da qualidade do serviço e do bem-estar social, tais estudos demonstram que, em cidades onde o saneamento foi remunicipalizado (835 cidades em 37 países entre 2000 e 2015), a gestão pública garantiu tarifas mais justas e serviços de melhor qualidade, reforçando o argumento que as populações são contrárias aos processos de privatização de saneamento em serviços públicos, não bastasse o vasto arcabouço de estudos produzidos relacionando tal questão internacionalmente, há o que não falta são exemplos de como a privatização do saneamento falhou no Brasil, como citado acima.Mas se as populações são afetadas, como os mecanismos privatistas funcionam em uma perspectiva social? Os mecanismos são muitos e eles seguem tendências diferentes, uma das exposições dos sinais desses fenômenos, conforme o artigo Gramáticas do mercado: a financeirização enquanto interpretatividade de metadiscursos na Antropologia Econômica no caso das privatizações da água no Brasil, é exatamente o que ocorre no Piauí: a retórica da gestão eficiente, do avanço e da dita “modernidade” na administração pública:

“Para que se faça sentido não pensar em coletivização ou ressignificação dos “bens em comum”, ou da agência, detenção e propriedade das mercadorias, os agentes de mercado em sua forma reducionista criam o artifício retórico da privatização como signo necessário a um processo de individualização dos lucros e do prejuízo inteiro dessas populações em detrimento das privatizações seja veiculado midiaticamente é preciso ler os interesses econômicos e políticos que são intrínsecos a essa retórica, especialmente no dito período “neoliberal”, e também como numa interpretação de Appadurai (2008) em relação a cultura e mercadoria serem indissociáveis e na lógica da vida social das coisas e dos signos com interesses também contraditórios para outros significantes, interessados, inclusive.Jornais, programas de televisão, vinculações em redes sociais, são instrumentos para evasão e capilaridade dessas discursividade, então para que a lógica mercadológica faça se permanente é preciso em sentido ‘’evolucionista” de que as privatizações são o futuro, e que o caminha para dita modernidade seja a eficiência na gestão – não é raro essas vinculações entre questões sociotécnicas e econômicas para que se faça acreditar que as agências do dito mercado são portanto uma espécie de solução inescapável tão quanto o discurso do avanço tecnológico” (Ferreira, 2024).

Falta de transparência e participação popular

A dita falta de transparência no processo pode ser também um dos pontos mais críticos, afinal, a primeira audiência pública foi realizada virtualmente, com a participação de apenas 13 pessoas, e nenhum prefeito dos 224 municípios do estado compareceu, já a consulta pública foi encerrada em 14 dias, tempo insuficiente para a análise das mais de 9.000 páginas do relatório apresentado, o que evidencia a falta de envolvimento da população no processo, o que de determinada perspectiva vem a ferir dispositivos legais que exigem a participação social, um deles e mais relevantes é a Lei nº 14.133/2021, que regula licitações e contratos administrativos, e que contêm um dispositivo em seu art. 21 que a audiência pública deve ser realizada para discutir com a sociedade o impacto da concessão de serviços públicos, a audiência pública deve considerar as manifestações recebidas e disponibilizar os resultados de maneira transparente, conforme estipulado também pela Lei Federal nº 11.445/2007 (art. 11, inciso IV).

Uma limitação como a citada acima, de tempo, de complexidade técnica influencia a participação para ser reduzida e também contradiz o princípio da gestão democrática da água, estabelecido pela Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997), que também, como todas as citadas anteriormente exige a participação popular nas decisões relacionadas para a gestão dos recursos hídricos. Outro dispositivo é que a audiência pública deve considerar as manifestações recebidas e disponibilizar os resultados de maneira transparente, conforme estipulado também pela Lei Federal nº 11.445/2007

O engenheiro Florentino Filho, presidente do Sindicato dos Engenheiros do Piauí, e a conselheira Carla Mata, do Conselho de Direitos Humanos, destacaram que a audiência foi apenas uma formalidade para legitimar o processo, sem dar espaço para discussões aprofundadas, principalmente para um debate exaustivo e que vem a considerar perspectivas multifacetadas de movimentos sociais, argumentos técnicos contrários e questões para além da simples economia, portanto, a metodologia adotada para abordar o assunto não atende aos requisitos constitucionais de transparência e participação, violando o direito dos piauienses à consulta prévia sobre decisões que impactam diretamente suas vidas, vidas essas que dependem diretamente da água, e que 30, 35 anos, de prazo concessionário são extremamente longos.

Dispositivos jurídicos controversos

Uma das contradições explícitas relativa ao direito ao saneamento básico é garantido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001), que é um direito social fundamental, neste caso, a privatização do setor compromete o acesso universal a esse direito, pois a água deve ser tratada como um bem público, sendo sua gestão deve seguir os princípios da função social da propriedade (art. 5º, XXIII da CF/88) e do interesse público.Um outro ponto de contestação é cernente a atribuição da fiscalização e execução dos serviços de saneamento à mesma entidade, a Agrespi, que viola os princípios da legalidade e da moralidade administrativa previstos na Constituição em tal modelo proposto pelo governo contraria os princípios da segregação de funções e transparência que regem a administração pública, o que seria uma confusão institucional extremamente controversa.

As alternativas à privatização

Existem alternativas de Estado que sim, como citadas acima são baseadas em estudos e evidências e que explicita questões quanto aos pontos contrários à privatização que preservam o controle público e garantem o direito ao saneamento. Uma delas é o O fortalecimento da própria Agespisa, por meio de investimentos e políticas públicas, é uma opção que poderia ser explorada, experiências de remunicipalização em países como a França e a Alemanha demonstram que a gestão pública pode ser eficiente e garantir acesso universal a serviços de qualidade, conforme o próprio TNI supracitado e também seus estudos. Um ponto para reforço técnico seria parcerias institucionais e sobre a principal questão, a econômica, na qual é etiologia e fundamentação do início da privatização, pode ser o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), afinal, o governador do Piaui é governista, tramitações políticas e técnicas, de cunho popular e estatal, devem ser a premissa para qualquer governante progressista – também não falta experiência e técnicos no BNDES para estruturação de projetos de infraestrutura de saneamento, como também não falta dinheiro para salvar a Agespisa – o que parece faltar é vontade política para reforçar a a Águas e Esgotos do Piauí (Agespisa) enquanto empresa estatal, pública e que dará solução a universalização do saneamento no Piauí, em especial, para populações vulneráveis que sem dúvida serão prejudicadas pela privatização.

Para se ter ideia do absurdo de uma via direta na privatização, sem considerar alternativas, No Brasil, as experiências de Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) em diversos municípios do interior, mostram que é possível manter o controle público, garantindo a expansão dos serviços de saneamento, e índices ótimos segundo o SNIS, como por exemplo, Uberlândia, Ribeirão Preto e Poços de Caldas, tais instituições conseguiram superar crises financeiras e ampliar o acesso ao saneamento básico por meio de políticas de subsídio cruzado e financiamento de longo prazo, e no que cerne este longo prazo daqui a diante, se os serviços de saneamento forem privatizados no Piauí, todos perdem, menos a empresa privada que ganhar o leilão, afinal, o que tal empresa quer não é o bem comum, uma tarifa baixa ou mesmo a universalização do saneamento, pois estas premissas são contrárias ao lucro, do qual qualquer empresa privada procura e existe por isso.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2001.
BRASIL. Lei n° 14.133, de 1 de abril de 2021. Dispõe sobre licitações e contratos administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2021.

TRANSNATIONAL INSTITUTE; CORPORATE EUROPE OBSERVATORY. Reclaiming Public Water: Achievements, Struggles and Visions from Around the World. Amsterdam: TNI, 2015.

FERREIRA, L. G. T. Gramáticas do mercado: a financeirização enquanto interpretatividade de metadiscursos na Antropologia Econômica no caso das privatizações da água no Brasil. Belo Horizonte: FNU, 2024.

MARTINS, T.; SANTANA, L. M. No Piauí, governador do PT prepara privatização de água e esgoto. Marco Zero, 25 abr. 2023. Disponível em: https://marcozero.org/no-piaui-governador-do-pt-prepara-privatizacao-de-agua-e-esgoto/. Acesso em: 16 set. 2024.

Seis exemplos de como a privatização do saneamento falhou no Brasil. Brasil de Fato, 19 mar. 2024. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2024/03/19/seis-exemplos-de-como-a-privatizacao-do-saneamento-falhou-no-brasil. Acesso em: 16 set. 2024.

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU, dirigente do Sindágua-MG, acadêmico em Antropologia Social e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)