Lucas Tonaco*
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Após o leilão da DESO, a Companhia de Saneamento de Sergipe, o único fato inequívoco é que infelizmente, o governador Fábio Mitidieri acaba de sacrificar o saneamento público em prol de um projeto que não deu certo em nenhum lugar do mundo, inclusive no Brasil, mas que, de fato o único argumento é que a privatização levará  “modernização do estado” e “avanços”, principalmente em critérios econômicos, mas que pagará a conta dos grandes lucros dos oligopólios de saneamento? A população, que certamente terá contas aumentadas e verá infelizmente uma grande instabilidade na prestação do serviço, arriscando inclusive com que pessoas passem sede no Sergipe.

O fenômeno é tão certo e a história já está roteirizada que o que ocorre é que após a aprovação da Lei 14.026/20, que atualiza o Marco do Saneamento, a finalidade era exatamente essa: financeirizar o saneamento ,deixar contas cada vez mais elevadas, através do oligopólio AEGEA e Iguá e uma engenharia financeira que se passa por participação de gestoras de private equity internacionais. Em artigo intitulado de BTG, Iguá e Aegea: o que está por trás do mercado da água no Brasil, publicado em diversos meios, entre eles no Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), no dia 21 de julho de 2023, o fenômeno é descrito:

Os movimentos do mercado financeiro, incluindo a participação de gestoras de private equity, desempenham um papel crucial na busca pelo controle das empresas de saneamento. No caso da Iguá Saneamento, a IG4 Water, uma gestora de private equity, juntamente com o Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) e a Alberta Investment Management Corporation (AIMCo), detêm o bloco de controle da empresa

O artigo descreve como táticas oligopolistas já eram sintomáticas em especial da Iguá e da Aegea na SABESP, COPASA e CORSAN, que através de uma engenharia concorrencial (nada concorrencial), como foi também exatamente o mesmo caso da SABESP – que só teve um concorrente – conforme também citado no artigo, esse o grupo Equatorial. A arquitetura de editais, as poucas empresas especializadas nisso, entre elas raras bancas de advogados que moldam e auxiliam o processo, a metodologia de captação conjunta com o lobby do mercado financeiro, aqui no Brasil, em especial o BTG, Itaúsa e o Opportunity e a cultura da estruturação de projetos de saneamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em sua fase privatista (que até até hoje deixa ecos e praticantes), fez com que o maior retrocesso da história do povo sergipano acontecesse, e exatamente como nos moldes previstos, abaixo segue uma chocante contestação do fenômeno.

Em matéria publicada pela Veja – Leilão de saneamento em Sergipe tem desfecho curioso – em 15 de Setembro de 2024, há a confirmação do absurdo:

“A Iguá, controlada pelos fundos canadenses CPP Investments e AIMCo, venceu o leilão para concessão dos serviços de saneamento em Sergipe com o lance de 4,5 bilhões de reais, ficando à frente da Aegea, que conta com investimentos de um fundo de Singapura, da Equipav e da Itaúsa. Apesar da vitória, por pouco o processo não teve mais emoção. Pelas regras do edital, o lance só evitou uma disputa em viva-voz com as concorrentes pela diferença de 2 milhões de reais. Um lance cirúrgico”

Resumo da ópera: a diferença dos lances foi de 0,044%. Não bastasse ser apenas curioso, como o próprio título da Veja roga, mas sim, merece mesmo, no mínimo, é uma indagação mais concreta do Ministério Público de Sergipe, do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SE) e do Tribunal de Justiça do Sergipe (TJSE) sobre o quão improvável e absurdo é o desfecho do leilão.

Não bastasse o script de sempre dos que com o falso discurso da concorrência acabam reforçando monopólio e deixando reféns o povo nas mãos de quatro conglomerados que concentraram lucros, aos quais certamente, em boa parcela não ficará nem mesmo no Brasil e não reverterá em investimento no saneamento. Caberia também outras questões, tais como também citadas no caso do Piauí e escritas no artigo O maior retrocesso da história do Piauí vai acontecer no saneamento: a observação especial a pesquisas, estudos e evidências internacionais, como as realizadas pelo Transnational Institute (TNI) e o Corporate Europe Observatory (CEO), indicam que a ausência de transparência em processos de privatização tende a favorecer interesses privados, muitas vezes à custa da qualidade do serviço e do bem-estar social, tais estudos demonstram que, em cidades onde o saneamento foi remunicipalizado (835 cidades em 37 países entre 2000 e 2015), a gestão pública garantiu tarifas mais justas e serviços de melhor qualidade, reforçando o argumento que as populações são contrárias aos processos de privatização de saneamento em serviços públicos, não bastasse o vasto arcabouço de estudos produzidos relacionando tal questão internacionalmente, há o que não falta são exemplos de como a privatização do saneamento falhou no Brasil, como citado acima.Mas se as populações são afetadas, como os mecanismos privatistas funcionam em uma perspectiva social? Os mecanismos são muitos e eles seguem tendências diferentes, uma das exposições dos sinais desses fenômenos, conforme o artigo Gramáticas do mercado: a financeirização enquanto interpretatividade de metadiscursos na Antropologia Econômica no caso das privatizações da água no Brasil, é exatamente o que ocorre no Sergipe e Piaui: a retórica da gestão eficiente, do avanço e da dita “modernidade” na administração pública:

Para que se faça sentido não pensar em coletivização ou ressignificação dos “bens em comum”, ou da agência, detenção e propriedade das mercadorias, os agentes de mercado em sua forma reducionista criam o artifício retórico da privatização como signo necessário a um processo de individualização dos lucros e do prejuízo inteiro dessas populações em detrimento das privatizações seja veiculado midiaticamente é preciso ler os interesses econômicos e políticos que são intrínsecos a essa retórica, especialmente no dito período “neoliberal”, e também como numa interpretação de Appadurai (2008) em relação a cultura e mercadoria serem indissociáveis e na lógica da vida social das coisas e dos signos com interesses também contraditórios para outros significantes, interessados, inclusive.Jornais, programas de televisão, vinculações em redes sociais, são instrumentos para evasão e capilaridade dessas discursividade, então para que a lógica mercadológica faça se permanente é preciso em sentido ‘’evolucionista” de que as privatizações são o futuro, e que o caminha para dita modernidade seja a eficiência na gestão – não é raro essas vinculações entre questões sociotécnicas e econômicas para que se faça acreditar que as agências do dito mercado são portanto uma espécie de solução inescapável tão quanto o discurso do avanço tecnológico” (Ferreira, 2024).

Outra parte interessante, é o conflito com relação a realização de debates maiores, mais amplos e com mais participação popular, como no caso do Piauí, onde mais uma vez, conforme em citação ao artigo supracitado: a Lei nº 14.133/2021, que regula licitações e contratos administrativos, e que contêm um dispositivo em seu art. 21 que a audiência pública deve ser realizada para discutir com a sociedade o impacto da concessão de serviços públicos, a audiência pública deve considerar as manifestações recebidas e disponibilizar os resultados de maneira transparente, conforme estipulado também pela Lei Federal nº 11.445/2007 (art. 11, inciso IV).Uma limitação como a citada acima, de tempo, de complexidade técnica influencia a participação para ser reduzida e também contradiz o princípio da gestão democrática da água, estabelecido pela Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997), que também, como todas as citadas anteriormente exige a participação popular nas decisões relacionadas para a gestão dos recursos hídricos. Outro dispositivo é que a audiência pública deve considerar as manifestações recebidas e disponibilizar os resultados de maneira transparente, conforme estipulado também pela Lei Federal nº 11.445/2007 e isso deveria inclusive fundamentar conclusões ou argumentos óbvios: de que infelizmente não é passível, um patrimônio como a DESO estar envolto em disputas falso concorrenciais.

Não resta dúvidas e evidências que o processo merece um escopo e maior transparência, afinal, outros afetos também são os próprios trabalhadores da DESO que se vêm em uma situação difícil tendo que inclusive contar muito com a luta coletiva sindical, no caso, do SINDISAN, que lutou, luta e lutará incessantemente contra tal privatização e para a proteção dos empregos que agora ficam em uma situação difícil, afinal, pode a batalha ter sido uma derrota, mas certamente a guerra não. É preciso políticos, autoridades, líderes comunitários, acadêmicos e especialmente o povo sergipano ter a plena concepção do absurdo que foi o escândalo da privatização da DESO.

 Referências

BTG, Iguá e Aegea: o que está por trás do mercado da água no Brasil. Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), 21 jul. 2023. Disponível em: https://ondasbrasil.org/btg-igua-e-aegea-o-que-esta-por-tras-do-mercado-da-agua-no-brasil/. Acesso em: 17 set. 2024.

Leilão de saneamento em Sergipe tem desfecho curioso. Veja, Radar Econômico, 15 set. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/leilao-de-saneamento-em-sergipe-tem-desfecho-curioso. Acesso em: 17 set. 2024.

O maior retrocesso da história do Piauí vai acontecer no saneamento. FNUCUT, 2024. Disponível em: https://www.fnucut.org.br/46436/o-maior-retrocesso-da-historia-do-piaui-vai-acontecer-no-saneamento/. Acesso em: 17 set. 2024.

Gramáticas do mercado: a financeirização enquanto interpretatividade de metadiscursos. FNUCUT, 2024. Disponível em: https://www.fnucut.org.br/46195/gramaticas-do-mercado-a-financeirizacao-enquanto-interpretatividade-de-metadiscursos/. Acesso em: 17 set. 2024.

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU, dirigente do Sindágua-MG, acadêmico em Antropologia Social e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)