Lucas Tonaco*
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A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) foi fundada em 1975,  passou durante mais de quatro décadas realizando saneamento público em um Estado com desigualdades enormes, e com vulnerabilidades socioeconômicas também grandes, além dos desafios técnicos de topografias variáveis, conurbações e desafios de alta complexidade de engenharia, a CEDAE também promoveu responsabilidade social, ao reboque de profissionais qualificados, chegado a possuir um centro de treinamento, a UniverCEDAE, com capacidade de treinar e reciclar até 500 colaboradores-alunos/dia.

A tempestade perfeita para a privatização da CEDAE unia basicamente cinco elementos: a financeirização do saneamento; a lei recém-criada para “atualizar o saneamento” – a 14.026/20; a crise fiscal e financeira do RIo de Janeiro ensejando as discussões do dito “Regime de Recuperação Fiscal”; a formação de um oligopólio no saneamento (Iguá e AEGEA) no pós-lobby da 14.026; e, por último, o locus circunstancial político complexo, sendo a pandemia de COVID-19, onde a discussões “reduzidas” e abreviadas, fizeram com que em 30 de abril de 2021 fosse realizado o leilão na Bolsa de Valores de São Paulo (B3).


Fonte da Infografia: Taynara Cabral

A égide dos argumentos relacionados favoráveis à privatização, além da questão fiscal, uma discussão inadequada sobre geosmina tendenciando uma discussão a respeito de “qualidade” e, principalmente, sobre e o fio condutor de todas as privatizações do saneamento no Brasil, uma interface entre política, mídia e think tanks, no dito Advocacy Coalition Framework (ACF) (SABATIER,1988), bem descrito na própria operação da preparação do terreno estrutural legal para a reforma do Marco do Saneamento (14.026/20), no artigo o aspecto ideacional como fator constrangedor das estratégias de lobby na aprovação do novo Marco Regulatório do Saneamento Básico no Brasil (ROLAND, 2022).

Fonte do fluxograma: Victor Lopes Mendes Roland

A evidência do policy broker, como o Instituto Trata Brasil, é reforçado pelo wishful thinking do publinotíciário que a mídia exerce, exatamente como descrito no artigo a mídia brasileira precisa aprender a abordar sobre saneamento. No caso do Rio de Janeiro, o que não faltou a época foi este tipo de inserção estratégica do lobby privado: Cedae precisa ser privatizada, Falta d’água é prova eloquente de que Cedae precisa ser privatizada, A CEDAE comprova: há muito governo na água do Rio de Janeiro e Sem concurso há oito anos, privatização da Cedae se aproxima. Estes são apenas cinco exemplos amostrais de como a narrativa desses think tanks liberais, conjuntamente com a ação midiática, fizeram a Janela de Overton e o constrangimento necessário para a privatização. Unida a discussão da universalização com  a “necessidade de investimentos” – que inclusive não chegaram no tempo adequado, reforçando ainda mais a tese da falácia de que até 2033 os principais problemas de investimentos seriam sanados -, eis abaixo uma tabela de como seria feito os devidos repasses hipoteticamente para “corrigir” o problema de financismo em saneamento e investimentos.

 Fonte da Infografia: Taynara Cabral

Introduzido os aspectos históricos e fenomenológicos da privatização da água no Rio de Janeiro, 3 (três) anos já são suficientes para afirmar: a privatização foi um fracasso técnico, econômico, sanitário e humanitário.

O fracasso técnico da estruturação da privatização da CEDAE

Todo o processo de prospecção sobre a privatização da CEDAE, a dita fase de estruturação, tem como etapa essencial para realizar a modelagem (principalmente econômica) e posteriormente o edital para o leilão da privatização, o levantamento de dados. Essa fase, o pré-leilão, foi demanda do governo do estado para o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), onde como práxis metodológica, recorresse a dados secundários e não primarizados em sua obtenção, o antigo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), hoje Sistema Nacional de Informação em Saneamento Ambiental (SNISA). O erro na coleta dos dados, ou pelo menos da redundância, da verificação destes mesmo dados para transformá-los em informação para tomada de decisão. Isso, consequentemente, refletiu no dito “reequilíbrio” econômico financeiro e também na tarifa. Em novembro de 2024, um estudo contratado por concessionária contesta informações de cobertura de esgoto fornecidas pelo RJ antes do Leilão da Cedae e é de impressionar que, pelas regras do edital, a margem máxima de erro dos dados fornecidos não deveria ultrapassar 18,5%. Afinal, se tratando de cifras bilionárias e questões complexas como investimentos em saneamento esta margem de erro é inimaginavelmente um grande, literalmente, erro, pois isso teria impacto direto na modelagem, nos investimentos, na dita universalização e nas tarifas. Mas o erro prosseguiu – só para citar alguns exemplos do tamanho da falha – em Queimados, a diferença foi de 42% para 3% na cobertura de rede de esgotamento sanitário; e em Nova Iguaçu, dos 45% previstos, apenas 2%; em Duque de Caxias, a diferença entre os dados foi de 43% para 16%. E quem vai pagar por essa “falha” “imprevisível” em uma estruturação que foi auditada antes, durante e agora 3 (três) anos depois? O consumidor no dito “reajuste” ou “readequação”, e como? Literalmente, segundo o próprio governador Claudio Castro agora diz que precisa aumentar a tarifa porque o valor cobrado no leilão da empresa estava errado. Uma falha de 5,9 bilhões de reais, em um leilão de 22 bilhões de reais, não apenas seria uma falha estrutural, de prospeção ou técnica, talvez seria o óbvio mesmo: deixar um negócio mais “atrativo” para um leilão mais “competitivo” – se é que existe competição no oligopólio do saneamento do Brasil -, mas deixar uma matriz de risco flutuante. Afinal, se a máxima do capitalismo é a remuneração pelo risco, quanto mais risco “imprevisível” no caminho, mais remuneração.

O fracasso econômico da privatização da CEDAE

Segundo informações da CTB-RJ, as tarifas aumentaram o dobro da inflação, com autorização da Agência Reguladora (Agenersa). “O que levou a Agenersa a, no estado com os índices de desemprego e desigualdade que temos, autorizar o aumento da tarifa na ordem de 11,82% e 10,24% em 2022 e 2023, anos que tiveram IPCAs de 5,79% e 4,62%”. Por óbvio, após o erro na prospecção de dados, o aumento será ainda maior.

A comprovação tácita e empírica de como este caos se dá em diversas camadas demográficas, sociais, geográficas e econômicas do Rio de Janeiro, pode ser vista pela repercussão midiática: reclamações sobre aumento da conta de água sobem mais, de 500% em um ano, ou mesmo que o valor da conta de água pode subir até 700% nos condomínios, ou mesmo entre os comerciantes, como no caso de donos de bares e restaurantes denunciam aumento de até 800% na conta de água, o caos econômico, principalmente, entre as camadas economicamente mais vulneráveis fizeram com que o Procon do Rio acionasse Águas do Rio por cobrança por estimativa em contas de consumo e, até mesmo, a Defensoria Pública do Rio firmasse acordo para impedir tarifas abusivas nas contas de água.

Portanto, não resta dúvidas e evidências de que, para o(s) consumidor(es), a privatização de fato fez um aumento da tarifa e, até então, não gerou nenhuma evidência da melhoria da qualidade do serviço ou mesmo a tal universalização, ao contrário: a premissa da universalização é o acesso, inclusive econômico, com a dignidade da não inadimplência, ao permitir com que a sociedade tenha tarifas menores – como o prometido pela “falácia da concorrência” da privatização no saneamento –  ou, no mínimo pagáveis. Afinal, como supracitado, o que ocorre nos casos de privatização da água, e neste caso no Rio de Janeiro, são tarifas maiores e a regulação do setor não evitando este fenômeno.

O fracasso sanitário e humanitário da privatização da CEDAE

Além do aumento de contas, muitas vezes impagáveis, o que se tem com a privatização da CEDAE, no estado atual de coisas, é também uma crise de abastecimento. Para evidenciar como essa crise de abastecimento é grave, e tem um recorte temporal específico após a privatização, não é preciso usar as milhares de centenas de notícias sobre essa mesma falta de água, basta usar uma metodologia para medir socialmente as procuras sobre um determinado tópico. Em uma pesquisa no Google Trends sobre falta de água – Com recorte temporal entre 2010 até 2024, três coisas ficam bastante evidentes: após a privatização existe uma maior frequência da procura por falta de água; as regiões dessas procuras se concentram massivamente no Rio de Janeiro; e a tendência é de que cada vez mais procura pelo fenômeno.


Fonte: Google Trends

Além da falta de água para toda a população de uma maneira em geral, a preocupação é maior com áreas mais vulneráveis socialmente como periferias, que obviamente é mais afetada, e em, um recorte de gênero e racial, a questão se agrava ainda mais, pois as mulheres negras são as principais vítimas da falta de saneamento.  Além de contas mais altas, questões técnicas e econômicas ignoradas, da não universalização e da qualidade precária do serviço, os empregos no saneamento privado do Rio de Janeiro causam um outro problema que tem reflexos humanitários – o da desigualdade trabalhista, que, devido a salários ruins, altos turnovers  e até mesmo desigualdades salariais em regiões diferentes, também possuem um impacto direto na economia e na qualidade do saneamento, até mesmo paralisações frequentes são relatadas.

Breves conclusões sobre a privatização da água no Rio de Janeiro

Transbordam evidências de que, até então, a privatização do saneamento no Rio de Janeiro piorou a situação. Afinal, com o aumento de contas, queda na qualidade do serviço, interrupções frequentes e menor controle político e social do serviço público de saneamento, o que se tem a concluir, pelo menos em breves aspectos, é que não apenas não fez aquilo que se propunha, mas como também, até mesmo entre questões laterais como o da crise fiscal no estado, que a propósito a privatização da CEDAE não deveria ter sido parte dessa “solução”, sendo mesmo, um novo problema.
O que mais este caso, no meio de tantos outros, deixa conclusivo é que tem sido um erro catastrófico as privatizações no saneamento, pois, obviamente, água deve ser um direito, e não uma mercadoria.

Referências

BTG, Iguá e Aegea: o que está por trás do mercado da água no Brasil? Ondas Brasil. Disponível em: https://ondasbrasil.org/btg-igua-e-aegea-o-que-esta-por-tras-do-mercado-da-agua-no-brasil/. Acesso em: 17 jun. 2024.

GONÇALVES, Victor. A financeirização e o saneamento. Scientia et Lex. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/sclplr/article/viewFile/87027/46749. Acesso em: 17 jun. 2024.

Testes da Cedae confirmam presença de geosmina na água que abastece o Rio. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/testes-da-cedae-confirmam-presenca-de-geosmina-na-agua-que-abastece-o-rio/. Acesso em: 17 jun. 2024.

A mídia brasileira precisa aprender a abordar sobre saneamento. Brasil de Fato MG. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2024/09/25/a-midia-brasileira-precisa-aprender-a-abordar-sobre-saneamento. Acesso em: 17 jun. 2024.

CEDAE precisa ser privatizada. Instituto Millenium. Disponível em: https://institutomillenium.org.br/cedae-precisa-ser-privatizada/. Acesso em: 17 jun. 2024.

Falta d’água: prova eloquente de que Cedae precisa ser privatizada. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/falta-dagua-prova-eloquente-de-que-cedae-precisa-ser-privatizada-24789608. Acesso em: 17 jun. 2024.

A Cedae comprova: há muito governo na água do Rio de Janeiro. Mises Brasil. Disponível em: https://mises.org.br//article/3217/a-cedae-comprova-ha-muito-governo-na-agua-do-rio-de-janeiro. Acesso em: 17 jun. 2024.

Privatização da CEDAE. Folha Concursos. Disponível em: https://folha.qconcursos.com/n/privatizacao-cedae. Acesso em: 17 jun. 2024.

4 anos do novo marco do saneamento: a lei se mostrou um fracasso. Brasil de Fato MG. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2024/07/23/4-anos-do-novo-marco-do-saneamento-a-lei-se-mostrou-um-fracasso. Acesso em: 17 jun. 2024.

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU, dirigente do Sindágua-MG, acadêmico em Antropologia Social e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)