Dois fóruns se colocam em posições diametralmente opostas em relação à água durante essa semana em Brasília. De um lado, o Fórum Alternativo Mundial da Água tem como lema “água é direito, não mercadoria”. No espectro contrário, o 8º Fórum Mundial da Água slogan “compartilhando água”.
A crítica do assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), Edson Aparecido da Silva, já parte desse ponto. “Questionamos: compartilhando a água de quem, para quem e para quê?”.
Edson está há mais de um ano na coordenação do FAMA, um encontro organizado por movimentos populares e sindicais, indígenas, quilombolas, pescadores do Brasil e de diversos países. As atividades começaram no último sábado (17/3) e se estende até a próxima quinta-feira (22/3), dia internacional de luta pela água.
Nesta entrevista, o sindicalista aponta os pontos centrais defendidos pelos dois fóruns, aponta os motivos da escassez de água e afirma que o Brasil está na contramão da tendência mundial, que está privatizando a água, enquanto vários países estão remunicipalizando os serviços de saneamento após o fracasso da gestão privada.
FAMA – Brasília sedia durante esta semana dois fóruns distintos. Quais são as perspectivas de cada um sobre a água?
Edson – O 8º Fórum Mundial da Água é organizado pelo Conselho Mundial da Água, criado em 1996 na França. Esse conselho é formado por entidades da sociedade civil, representantes de governos e por empresas públicas e privadas. Entre seus parceiros, destacam-se grandes empresas operadoras de serviços de saneamento no mundo, além de grandes transnacionais como Coca-Cola e Nestlé. Apesar de usarem a narrativa dos seguimentos sociais que se posicionam contra a privatização e mercantilização da água, sua estratégia é criar mecanismos que colocam a água como objeto de negócio, mercadoria geradora de lucro, na medida em que a água trata-se de um insumo central da produção e reprodução do capital.
Em contraposição a essa lógica, presente no 8º Fórum, desde fevereiro de 2017 diversas entidades do movimento sindical e popular, da cidade e do campo, do Brasil e de vários países do mundo resolveram organizar o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA). O FAMA tem se constituído enquanto um espaço horizontal, democrático e que tem conseguido juntar, no processo de sua construção, entidades das mais variadas matizes de organização e pensamento, mas que tem como ponto de convergência a defesa da água como direito e não como mercadoria. Ou seja, apresenta a posição clara contra qualquer forma de privatização dos bens comuns, a defesa da soberania popular e dos direitos humanos e a luta pela preservação do planeta.
Já foram realizados outros fóruns alternativos da água. Qual é o acúmulo tirado desses outros encontros e qual é a especificidade desse fórum?
O principal acúmulo é a constatação de que não basta que esses fóruns se realizem com toda força e expressão como tem acontecido nos outros fóruns alternativos, é preciso avançarmos nessa organização em nível mundial para fazer frente a estratégia do capital que devasta o meio ambiente e não mede esforços para se apropriar dos bens comuns em geral e da água em particular.
O tema da escassez de água está presente tanto nos discursos corporativos, como nos debates das organizações que compõe o FAMA. O que diferencia cada uma dessas perspectivas em relação ao tema da escassez de água no mundo?
A questão da escassez ou não da água esta ligada à forma como se entende e se encara seus usos e prioridades. A preservação do planeta, dos seres humanos é dos animais está relacionada ao modelo de desenvolvimento. O que está claro é que esse modelo predatório imposto pelo capital por meio das grandes corporações tem como única perspectiva o curto prazo, o aumento da exploração da mão de obra e das reservas estratégicas, o desrespeito às tradições e culturas e isso não é aceitável. Por isso, nosso lema é “água é direito, não mercadoria”. O objetivo do FAMA é discutir e apresentar propostas do povo em relação à defesa da água e dos bens comuns. A partir daí, nossa tarefa será dialogar com a sociedade e governos de todo o mundo e desenvolver estratégias para alcançarmos esses objetivos.
Existe um interesse específico das grandes corporações em realizar o Fórum Mundial da Água no Brasil? Qual o interesse geopolítico na questão da água no Brasil e na América Latina?
A realização do 8º Fórum Mundial da Água no Brasil conta com um cenário favorável já que o país vive sob a égide de um golpe, onde os direitos históricos dos trabalhadores e trabalhadoras sofrem violentos ataques e onde a agenda neoliberal privatizante volta à carga com destaque para o saneamento básico e as empresas de energia. Então, o que se espera é que o fórum das corporações se consolide no Brasil como uma grande feira de negócios. É óbvio que o olhar das grandes corporações está voltado para os países onde há grandes reservas minerais, hídricas, etc. E a América Latina é o cenário propício para se avançar na devastação do patrimônio do povo. Não podemos esquecer que o Brasil é o maior detentor de reserva de água superficial e subterrânea do planeta. O lema do 8º Fórum é “compartilhando a água”. Questionamos: compartilhando a água de quem, para quem e para quê?
O Fórum será realizado em Brasília, cidade que enfrenta racionamento de água há meses, caso semelhante ao vivenciado em São Paulo no ano de 2015. Quais são os motivos desses racionamentos em um país com tanta oferta de água?
A gestão da água e do saneamento não integra a agenda de prioridades dos governos, apesar da importante relação que o saneamento básico tem com a saúde, o meio ambiente e consequentemente com a qualidade de vida das pessoas, sobretudo as mais pobres. Não existe gestão de demanda de água, a lógica que predomina é o das grandes obras, que busca água cada vez mais longe, fazendo transposição de bacias sem se importar com os impactos sociais e ambientais. Além disso, algumas empresas, como a Sabesp em São Paulo, trabalham com uma visão de empresa de mercado que tem de gerar lucro para prestar contas aos acionistas no Brasil e Nova Iorque. Vive uma dicotomia entre uma empresa que deveria garantir um serviço público essencial e uma empresa de negócios.
Nos últimos anos, houve mais de 180 casos de remunicipalização de serviços de saneamento ao redor do mundo. Qual a explicação desse fenômeno? No Brasil, existe um levantamento dos municípios onde esse serviço foi privatizado? E quais as suas consequências?
O processo de remunicipalização dos serviços de saneamento em algumas cidades de vários países do mundo tem se tornado uma tendência nos últimos anos. Os países com o maior número de remunicipalizações são EUA, seguido da França, Espanha e Alemanha. Os principais problemas encontrados na gestão privada da água são: falta de investimento em infraestruturas, aumento de tarifas, danos ambientais e impossibilidade ou dificuldade de controle social, entre outros.
No Brasil cerca de 7% dos municípios tem algum tipo de participação privada, são concessões plenas (água e esgoto), concessões parciais (só água ou só esgoto), parcerias público-privadas (PPPs), subdelegação, locação de ativos e assistência técnica. O que temos assistido em grande parte das privatizações no Brasil é a incapacidade das empresas cumprirem o que foi contratado, receberem grandes somas de recursos do poder público sem a devida contra partida relacionada à prestação dos serviços. Como exemplo, podemos citar a região de Arapiraca em Alagoas, Região Metropolitana do Recife e de Goiás. O exemplo mais recente de remunicipalização de serviços de saneamento foi na cidade de Itu em São Paulo, em fevereiro de 2017, após 10 anos de serviços privados. A retomada dos serviços pelo município ocorreu depois de grande revolta da população em razão da crise abastecimento de água enfrentada pela população daquela cidade.
Atualmente, vivemos sob a ameaça do governo golpista de Michel Temer que pretende, através de uma Medida Provisória, promover alterações na legislação nacional de forma a facilitar o processo de privatização do saneamento básico no Brasil. (fonte FAMA2018)