De que adiantou irmos ao espaço, se fomos incapazes de preservar nosso bem primordial?
artigo: Flávio Tavares*
O ato de rememorar datas compõe uma lição cheia de surpresas, paradoxos ou, até, pequenas traições e imensas decepções. Por exemplo: o dia 12 de abril é marcante e ad aeternitatem todas as gerações o festejarão por algo que – literalmente – abriu caminho a um mundo novo. Hoje, no entanto, tem também um rosto oposto trágico ou perverso, até.
Naquele 12 de abril de 1961, o russo Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano a viajar pela imensidão do cosmo. Deu inusitadas voltas ao planeta e (entre o frenesi e o espanto) parecia, até, nos aproximar da imensidão do céu de Deus e de seu oposto, o inferno.
Eram tempos da União Soviética e, em plena guerra fria, a conquista foi sacudida também por perplexidade e temor. A corrida espacial com os Estados Unidos tomava um novo rumo, que tanto podia significar um fantástico passo adiante da ciência e da tecnologia quanto um catastrófico confronto militar entre as duas superpotências da época. Se um foguete levava um homem ao cosmo e com ele se comunicava, já pensaram o que seria substituí-lo por uma bomba nuclear e soltá-la do espaço sobre um alvo terrestre?
A conquista tecnológica sobrepôs-se, porém, à patologia bélica das superpotências. Abriu-se nova era, presente e visível hoje nas comunicações e na engenharia médica. O mundo e o universo tornaram-se mais amplos e, paradoxalmente, também mais próximos desde o primeiro Sputnik soviético, de 1957. Hoje, a sonda norte-americana da Nasa dá voltas contínuas a Marte e há, até, prognósticos de futuros voos tripulados ao planeta distante. Tudo no universo passou a estar a um palmo do nariz. O absurdo inalcançável de hoje pode – em anos – concretizar-se como mais um passo da humanidade.
Há, porém, outro 12 de abril, mais perto de todos nós no calendário e na geografia. Agora, nesse dia do nosso atual ano de 2018, a Cidade do Cabo, na África do Sul, ficará totalmente sem água, em secura absoluta. Nem sequer uma gota perpassará as torneiras, num alerta geral e profundo sobre a tragédia que se avizinha a cada dia: a falta d’água no planeta.
De que adiantou explorar o cosmo, atopetá-lo de satélites, criar “estações espaciais” – e demonstrar que nós, humanos, podemos subsistir no espaço num desafio à gravidade – se fomos incapazes de preservar e entender o bem primordial, a água, que dá vida ao que existe no planeta?
Na sociedade de consumo, em que desperdiçamos tudo – a começar pelo voto, o tempo e os compromissos –, a Cidade do Cabo faz uma advertência ao planeta inteiro.
A falta d’água castiga a África, mas é um fenômeno global, que, aqui, nos martela há anos, mas simulamos não existir. Nosso Nordeste vive situação semelhante à dos africanos. Mas, ensinou-nos Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” e festeja com abnegação os caminhões-pipa que os políticos enviam como esmola, num disfarce das somas desviadas pela corrupção. São Paulo sofreu o problema nas entranhas, dramaticamente, há pouco. Conseguiu maquiá-lo, sem resolver o essencial – educar a população, que continua a tratar a água como traste incômodo que jogamos fora para não nos molestar.
A crise hídrica (nome pomposo que encobre a visão burocrática dada ao tema) é visível até nas enxurradas e chuvas intensas, como as do final de março sobre São Paulo. A alternância de calor seco e chuva intensa é “marca da natureza”, diz o povo, mas se agrava e se transforma em ameaça com a súbita aceleração das mudanças climáticas.
O recente Fórum Mundial da Água, realizado em Brasília, insistiu na gravidade do problema, mas não estabeleceu normas concretas para mudar o comportamentos humano em relação à água. Nem sequer serviu de alerta o detalhe tragicômico de que Brasília (com o lago poluído) vive, de fato, sob racionamento, há meses.
Quem acelera as mudanças climáticas, em maior ou menor grau, senão a incompreensão de todos nós, em nome de uma visão falsa e artificiosa de progresso e conforto? As ruas de São Paulo e das demais cidades, cheias de automóveis e ruídos, retratam um caos que não se restringe ao trânsito nem provoca apenas a lentidão das longas e neuróticas esperas. A fuligem de nossos carros é o detalhe cotidiano de um horror maior, que todos conhecemos e sobre o qual é desnecessário insistir.
Nos últimos 90 anos, poluímos e contaminamos terra, mar e ar muito mais do que na soma de todos os séculos passados, após vencer o caos inicial da Criação. Agora, aceleradamente criamos outro caos ainda mais terrível. Sob a falsa alegação de desenvolver a “vida moderna”, estamos fazendo retornar ao nada tudo aquilo que a natureza criou em milhões de anos.
Mudar depende de cada um de nós. Só nós podemos alterar o caminho que criamos ao longo de séculos. Nenhum bicho, nem sequer o mais feroz, nenhuma árvore, nem mesmo a mais despida de folhas, jamais causou qualquer dano ao meio ambiente nem contaminou o solo, as águas e o ar. Mas não entendemos a obviedade.
Só um perseverante, tenaz e urgente trabalho de reeducação de um a um e que chegue a todos pode evitar esse suicídio que o hedonismo da sociedade de consumo acelerou nas últimas décadas. A tarefa deve abranger todos os setores, do poder público ao privado – empresariado, sindicatos, confissões religiosas e meios de comunicação. Rádio e televisão, que são serviços concedidos pelo Estado, podem desempenhar o papel mais significativo para formar a consciência de que a água é vida.
A opção é simples. O planeta está sedento e o 12 de abril da Cidade do Cabo é um alerta dramático cuja dimensão supera a imensidão do cosmo, que fomos conhecer em 1961, 57 anos atrás.
*Flávio Tavares – jornalista e escritor, professor da Universidade de Brasília, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA 2004.
Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 11/4/2018
ÁGUA É UM DIREITO, NÃO MERCADORIA