artigo: Ronaldo Bicalho*
“O Estado brasileiro abrir mão do controle dos reservatórios (50% da capacidade de estocagem brasileira), das centrais hidrelétricas (44% da capacidade de geração hidrelétrica brasileira) e das linhas de transmissão (47% da capacidade de transmissão brasileira) que hoje estão na Eletrobras implica entregar à iniciativa privada um recurso estratégico crucial na estruturação da transição elétrica brasileira. Transição esta, que ela, iniciativa privada, não tem condições de estruturar; tanto pela sua própria natureza quanto pela natureza dessa transição“
O setor elétrico brasileiro atravessa um momento crucial da sua história. A fundação sobre a qual foi construído todo o edifício elétrico brasileiro não é mais capaz de sustentá-lo.
Ao longo de décadas, o país desenvolveu uma forma bem-sucedida de jogar o jogo elétrico que, infelizmente, vem encontrando dificuldades cada vez maiores à sua continuidade. Apesar desse estilo de jogo ter garantido inúmeros títulos importantes, é necessário reconhecer que precisamos encontrar uma nova forma de atuar.
A exploração do generoso potencial hidráulico brasileiro mediante a construção de centrais hidrelétricas com grandes reservatórios de acumulação estruturou o setor elétrico no país, praticamente, desde o seu nascimento. Em função de restrições técnicas, econômicas, ambientais e políticas, não é possível seguir com essa exploração nesses termos. Sob essa perspectiva, o modelo tradicional de expansão da oferta de energia elétrica implementado pelo Brasil chegou ao seu limite.
Cabe notar que esse limite não é dado pela exaustão do potencial hidráulico per se, mas pela drástica redução estrutural da capacidade de regulação dos reservatórios em relação à carga (demanda) do sistema; fruto da impossibilidade da construção de novos reservatórios acompanhar o forte crescimento da demanda.
Assim, o nosso grande jogador, os reservatórios – com sua capacidade significativa de regularização, através da qual efetivamente mitigávamos o risco hidrológico -, não tem condições de seguir desempenhando, nos moldes tradicionais, a sua função decisiva na estruturação do setor elétrico brasileiro.
Contudo, o time segue jogando como se esse jogador estivesse no auge da sua forma física e técnica. As crises, cada vez mais graves, nascem do não reconhecimento dessa realidade e, em consequência, da recusa em aceitar que é preciso mudar a forma do time jogar. Em outras palavras, o setor elétrico brasileiro precisa se reinventar.
Para isso, é fundamental olhar o que acontece no setor elétrico no mundo. A partir desse olhar mais amplo, constata-se que a maneira de se jogar o jogo elétrico no mundo também está mudando drasticamente. Na essência, as razões são muito similares às nossas. O setor elétrico mundial, que foi erigido sobre a base da energia contida nos combustíveis fósseis, se vê impedido, por razões político/ambientais, de seguir utilizando esses combustíveis.
Dessa forma, assim como restrições ambientais de cunho local interditaram o uso da base tradicional de recursos naturais do setor elétrico brasileiro, restrições ambientais de cunho global interditaram a base de recursos naturais do setor elétrico mundial.
No caso mundial, a solução colocada na mesa é a utilização de uma nova base de recursos naturais formada pelas energias renováveis. O problema principal dessa substituição é a perda de controle sobre a disponibilidade da energia contida nessas fontes energéticas (p. ex, não controlamos quando e onde venta, tampouco quando e onde faz sol).
Essa perda muda completamente a forma como nós lidamos com a eletricidade. Forma esta baseada no acesso à energia que queremos, onde queremos e quando queremos.
A entrada em campo de um novo jogador, no caso as renováveis, muda radicalmente a natureza do jogo.
Para viabilizar a substituição dos fósseis pelos renováveis é preciso que a disponibilidade energética que nós estamos acostumados, obtida a partir de um estoque (fósseis) sobre o qual temos o pleno controle, seja agora alcançada a partir de um fluxo sobre o qual não temos controle (a energia dos ventos ou a energia do sol, p. ex.).
Para se alcançar isso, os desafios técnicos, econômicos, organizacionais e político/institucionais são enormes.
Face à estatura desses desafios e os riscos à segurança do abastecimento elétrico envolvidos em uma transição dessa natureza, a dimensão político/institucional tem adquirido uma incontornável relevância, trazendo com ela a necessidade de uma crescente participação do Estado no arbitramento dos elevados custos econômicos, políticos e sociais associados a essa mudança radical do mundo elétrico.
Se existe uma transição elétrica no mundo, a questão que se coloca é como nos inserimos nessa transição. Nessa nova forma de jogar que está se desenhando há espaço para utilizar os jogadores que temos? Quais são as vantagens que possuímos nesse novo setor elétrico que está nascendo?
Para a nossa felicidade, a nova forma de se jogar o jogo elétrico favorece os nossos jogadores, fazendo com que nós tenhamos vantagens significativas nesse novo setor elétrico que está surgindo.
Essas vantagens repousam na qualidade fundamental para a sobrevivência nesse mundo novo que é a flexibilidade necessária para fazer face à intermitência intrínseca às fontes renováveis. Essa flexibilidade está presente no setor elétrico brasileiro: (i) na grande capacidade de estocagem de energia, representada pelos nossos reservatórios; (ii) na grande flexibilidade do nosso parque gerador, representada pelas nossas centrais hidrelétricas; (iii) na nossa grande flexibilidade espacial, representada pelo nosso extenso e amplo sistema de transmissão.
Portanto, a partir dessas vantagens poderíamos tentar inverter a trajetória de custos crescentes da oferta de eletricidade e construir vantagens competitivas para a nossa indústria e condições favoráveis de acesso ao conforto provido pela eletricidade para a nossa gente.
Portanto, a mudança na forma de jogar o jogo elétrico no mundo recoloca os nossos principais jogadores, os reservatórios, na peleja. E faz isso justamente recuperando o papel estruturante desses reservatórios a partir da enorme importância adquirida pela sua capacidade de regularização; ampliada dramaticamente pela incorporação de novos fluxos a regularizar (solar e eólico) e pelo caráter crucial adquirido pelos estoques em um mundo em expansão de intermitências.
Esse renascimento dos reservatórios no novo mundo elétrico vale também para as nossas hidrelétricas e para o nosso sistema de transmissão. De tal forma que os elementos que estruturaram historicamente o setor elétrico brasileiro adquirem novos papéis que os repotencializam completamente no jogo estratégico envolvido na garantia do abastecimento elétrico do país.
Logo, discutir segurança energética no Brasil hoje passa pela reinvenção do nosso setor elétrico baseada nas generosas possibilidades que o novo mundo elétrico oferece ao país.
Nessa perspectiva, o Estado brasileiro abrir mão do controle dos reservatórios (50% da capacidade de estocagem brasileira), das centrais hidrelétricas (44% da capacidade de geração hidrelétrica brasileira) e das linhas de transmissão (47% da capacidade de transmissão brasileira) que hoje estão na Eletrobras implica entregar à iniciativa privada um recurso estratégico crucial na estruturação da transição elétrica brasileira. Transição esta, que ela, iniciativa privada, não tem condições de estruturar; tanto pela sua própria natureza quanto pela natureza dessa transição.
Não há dúvidas de que a transição elétrica, face às enormes incertezas, inseguranças e riscos nela envolvidos, não será comandada pelo mercado e as iniciativas dos Estados Nacionais ao redor do mundo apontam claramente nesse sentido (China, Alemanha, Inglaterra, p. ex).
Afinal, segurança energética é um tema central na agenda dos Estados Nacionais, na medida em que envolve a autonomia, a independência e a soberania desses Estados.
Por isso, é muito difícil justificar, sob a ótica do que está acontecendo no setor elétrico no mundo e no Brasil, a privatização de um conjunto tão significativo de ativos, com o afobamento e a despreocupação com o futuro com que isto está sendo feito no país, escorando-se simplesmente em argumentos essencialmente de curto prazo e de natureza fiscal.
Não é à toa o forte caráter ideológico que sustenta essa privatização, sintetizado na defesa da liberalização pura e simples do mercado elétrico brasileiro, recuperada dos anos noventa e reintroduzida a marretadas no contexto completamente distinto da presente transição energética global.
Dessa maneira se simplifica toscamente o debate e se esconde irresponsavelmente a complexidade dramática do contexto elétrico atual, com o seus riscos concretos à segurança energética do país. Estupidez e irresponsabilidade típicas desses tempos obscuros que vivemos; de pescadores de águas turvas e construtores de desastres anunciados.
*Ronaldo Bicalho – Diretor do Ilumina e Pesquisador do Instituto de Economia da UFRJ
Artigo publicado originalmente no Jornal GGN em 12/4/2018