“Privatizar a Eletrobras representa também aumentar temerosamente a insegurança hídrica no país, diante de crises que serão cada vez mais intensas, mais frequentes e inéditas em suas características e efeitos.”
artigo – Vicente Andreu*
As grandes bacias hidrográficas brasileiras têm como característica atravessar o território de vários Estados e às vezes países, usos cada vez mais intensivos em água e possuir hidrelétricas em seu percurso. A gestão dos conflitos entre setores usuários de águas nessas bacias tem se tornado cada vez mais complexa, seja pela intensidade e frequência das estiagens, seja pelos interesses sociais, econômicos e ambientais que disputam a utilização da água disponível. Crises hídricas, são, em essência, conflitos pela alocação da água existente.
Nestas bacias tais conflitos têm, inevitavelmente, colocado a necessidade da alteração das regras de operação das hidrelétricas, o que obriga, em cada crise hídrica, avaliar localmente não só os impactos na agricultura, saneamento, navegação, indústria, meio ambiente senão também as consequências no suprimento de energia em praticamente todo o território nacional.
Por sua intensidade e frequência, as crises recentes têm evidenciado o surgimento de outros conflitos, potencialmente explosivos: para além das demandas dos setores usuários, os próprios Estados que formam a bacia hidrográfica são também atores relevantes e que precisam ser analisados diante de seus interesses específicos, que podem ou não coincidir com os interesses dos diversos setores usuários tradicionais. A posição geográfica dos Estados na bacia, a existência de reservatórios, o peso político das decisões a serem tomadas, inclusive eleitorais, são elementos intrínsecos de cada crise. Não tratamos apenas de conflitos entre setores, mas também de conflitos federativos que podem ser gravíssimos. Pelas mesmas razões, podem ser motivo de conflitos internacionais.
Exemplos não faltaram nas crises nas Bacias do São Francisco, Tocantins, Madeira, Paraíba do Sul e Paraná. Até em bacias menores, como a do Piranhas-Açu, onde os reservatórios que regularizam a maior parte do rio estão no Estado de montante (Paraíba), o potencial do conflito federativo manifestou-se claramente.
Por sua relevância, um elemento estratégico fundamental na gestão das crises é a operação das usinas e reservatórios existentes, que, pelo fato de estarem integradas através do Sistema Interligado Nacional-SIN, coloca ou retira graus de liberdade nas opções de gestão em determinada bacia. Aí, a posição do Operador Nacional do Sistema-ONS nas decisões é muito grande. Creio que o fato do sistema hidro-gerador brasileiro ser basicamente público tem sido o elemento garantidor das decisões que foram tomadas, pois não tivemos que olhar a contabilidade das empresas ou do sistema. Em bacias onde há agentes privados no setor hidrelétrico, a presença majoritária da Eletrobrás e empresas públicas, como a CEMIG, foi – afirmo, foi – o elemento chave na construção das opções que possibilitaram gerenciar positivamente tais crises. Posso dizer também com tranquilidade que o ONS tem sido um grande parceiro na construção de soluções para a gestão das crises hídricas, mas com a mesma tranquilidade posso afirmar que isto não é um fato consolidado. Por seu papel estratégico, suas decisões técnicas não podem ser contaminadas pelos interesses econômico-financeiros dos agentes. Num ambiente predominantemente privado será. E será outro ONS.
Sinceramente, não creio que um setor hidrelétrico predominantemente privado terá a mesma liberdade de condicionar a segurança energética à segurança hídrica de cada bacia. E não é apenas por uma questão de convicção, foram os fatos vivenciados na gestão dessas crises. Basta olhar para os conflitos entre os operadores privados no rio Madeira – os únicos existentes na bacia – para compreender o quanto que a lógica privada no setor hidroelétrico traz de complexidade à gestão da água, quase sempre com a judicialização das medidas propostas. Ainda mais, quando também o sistema interligado nacional estiver subordinado à lógica de um agente privado dominante, operando num ambiente predominantemente de Produtor Independente-PI de energia, cuja prioridade são seus contratos. O SIN corre sérios riscos de deixar ser o elemento estratégico hoje capaz de garantir a segurança hídrica nas bacias e ao mesmo tempo a segurança energética nacional. Não é à toa que vários países com características semelhantes ao Brasil mantem o núcleo de seu parque hidro gerador e do seu sistema de transmissão de energia públicos.
Privatizar a Eletrobras, para além de outros fatores que tem sido apontados, representa também aumentar temerosamente a insegurança hídrica no país, diante de crises que serão cada vez mais intensas, mais frequentes e inéditas em suas características e efeitos.
* Vicente Andreu, estatístico, ex-presidente da Agência Nacional de Águas-ANA
Artigo postado originalmente em Observatório das Águas