Para o italiano Renato Di Nicola, do European Water Movement e do Foro Italiano Movimento Acqua, quem controla a água, também nos controla. Contrário à privatização, ele considera que por trás da luta pela água há uma disputa por visões de mundo. “Eles olham a água e veem dinheiro. E quando privatizam a água ou qualquer outro serviço, nos privam de decidir”.
Um dos coordenadores do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA2018), realizado em março/2018, em Brasilia, ele traz na bagagem a luta contra a privatização desse recurso na Itália, e é enfático ao defender a água como um instrumento democrático.
Em entrevista à revista Radis, ele criticou o interesse financeiro de multinacionais e defendeu estratégias mais incisivas para enfrentar a mercantilização: “Temos que mudar a nossa linguagem. Um desastre ambiental é um crime ambiental. Quem leva à morte milhões de outros indivíduos que não têm acesso à agua, não se equivoca, é criminoso”.
Segue a entrevista
Por que defender a água como direito?
A questão da água é internacional, global. Nós precisamos superar o nacionalismo da água, pois é uma maneira de dividir os povos. Na Europa, estamos tentando ficar juntos pelo tema da água. Temos problemas globais e urgentes. Veja, se a água dos aquíferos, que são uma reserva mundial de vida, passar para as mãos das multinacionais, será um problema mundial. Se a Nestlé ou a Coca-Cola se apoderarem da água do Guarani [aquífero que abrange partes dos territórios do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai], será um desastre para todos, um drama para a América Latina e para o Brasil, que tem 18% da água limpa do mundo. Não é democrático que uma multinacional decida sobre o bem de nossa vida, como ocorre no Uruguai. Precisamos alertar que esse tipo de capitalismo predador está em todo o mundo e precisa ser combatido.
Como foi o plebiscito na Itália, 2011, que decidiu pela não privatização da água?
Sou orgulhoso de nossa luta e de ser parte do povo. Na Itália, não existia um marco sobre as águas e resolvemos fazer um, a partir de um movimento popular. Frente à privatização, surgiu o povo e todas as organizações sociais se uniram numa campanha feita sem apoio de nenhuma televisão ou periódico. Ninguém nos entrevistava. Mas 60% das pessoas foram votar e tivemos 95% de votos contra a privatização. O processo desse plebiscito fortaleceu as pessoas que passaram a dizer “eu posso”. Agora, toda vez que tentam privatizar, há reação e eles desistem. Fincamos raízes e já estamos presentes em 50 cidades. Em março, fizemos 75 ações que chamamos de A Caravana da Água e ela exprime uma frase que inventamos: “Se escreve água, se lê democracia”.
Porque a associação entre água e democracia?
Quando privatizam a água ou qualquer outro serviço público, nos privam de decidir. Por isso que a batalha pela água é a batalha pela democracia. A água é um bem de todos. Ela é a base fundamental para ser o que queremos. Quem controla a água, também nos controla. Ela é saúde, memória e fundamental como ar. Somos feitos de água. Se colocarmos em dúvida a água e o ar, o que nos restará? Por isso temos o desafio de integrar todas as pessoas. Mas o problema é saber como a minha mãe, que tem 87 anos, pode integrar-se à luta pela água e contra a privatização.
Qual o risco da privatização da água?
Quando olhamos um rio, pensamos: “que coisa bonita!” Quando tomamos uma ducha nos sentimos bem. Quando imaginamos o mar, pensamos em viagem. Os capitalistas pensam em dinheiro e são perigosos para a vida humana. São muito potentes, estão se organizando. São mundos diferentes que se confrontam e que lutam uns com os outros. Para mim são delinquentes. Temos que mudar a nossa linguagem. Um desastre ambiental é um crime ambiental. Quem leva à morte milhões de outros indivíduos que não têm acesso à agua, não se equivoca, é criminoso. Esses criminosos que estão aí se servem de governos e fazem o que querem. Eu tenho uma frase que parece um pouco feia: “Ou cortamos cabeças ou cortam as nossas cabeças”. Felizmente temos inteligência e capacidade para não chegar a este nível. Mas é lá que chegaremos se esse sistema continuar dessa forma. Eu não quero isso porque sou humano. Mas depende muito da gente para construir um mundo mais democrático.
A água do planeta está acabando?
Quantitativamente, não. O problema é a água que podemos utilizar para a vida, que pode ser consumida, água potável. Percebo que falam que a água [em geral] vai terminar, para justificar que se coloque um preço. Nossa sociedade balanceia a vida pelo preço. Se eu digo que vai faltar algo, aceitam que ela custe mais. O símbolo é o dinheiro. Esse capitalismo fica encantado em contaminar e descontaminar a água. Em Singapura 80% da água vem da cloaca e contém minerais industriais. Israel é o Estado que tem mais tecnologia e investe na dessalinização da água, mas não resolve o problema das pessoas. E às vezes dessalinizar custa mais do que preservar. É uma loucura. Gastamos cem vezes mais por uma coisa que só serve momentaneamente quando poderíamos investir para preservar o que temos livremente.
(fonte: autor – Liseane Morosini – in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/5/2018)
Resistência contra a privatização da água e do saneamento no Brasil
Como uma das formas de resistência à privatização do saneamento no país, foi criado o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS – no último dia 25 de abril, em Brasília, por entidades sociais, sindicais e acadêmicas. Seu objetivo é formular políticas para o saneamento básico, lutar contra qualquer tentativa de privatização da água e elaborar documentos no setor.
A assembleia de fundação (oficial) do ONDAS está agendada para o próximo dia 7 de junho, às 17 horas, na Universidade de Brasília – UnB.
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