Um dos motivos fundamentais do Golpe de Estado de 2016 foi facilitar o avanço do capital internacional, especialmente o financeiro, sobre todos os bens naturais do Brasil, e aumentar a exploração dos trabalhadores no campo e na cidade conforme resulta todos os projetos do governo de Michel Temer, o mais antipopular e entreguista que o país já teve.
No cerne deste golpe está a prisão arbitrária do presidente Lula, as reformas e as privatizações cujo centro é venda da Eletrobras, a 16ª maior empresa de energia do planeta, onde 85% da geração de sua energia é a base de água (hidroeletricidade), uma das fontes mais importantes e disputadas do mundo.
A Eletrobrás é composta por 16 empresas (CHESF, FURNAS, ELETRONORTE, ELETROSUL, ELETRONUCLEAR, CGTEE, CEPEL, ELETROPAR, AMAZONAS GT, AMAZONAS D, CERON, CEPISA, CEAL, ELETROACRE, BOA VISTA e por 50% de ITAIPÚ) e por 177 SPEs (Sociedade de Propósito Específico).
O patrimônio da estatal inclui 233 usinas de geração com 48.134 MW de potência (31% do Brasil) – sendo 47 grandes hidrelétricas; 114 térmicas, 69 eólicas e 02 nucleares; 70.000 km de linhas de transmissão (47% do Brasil); e atende 4,3 milhões de consumidores na distribuição, especialmente na Amazônia brasileira. Em 2016, a empresa registrou lucro de 3,4 bilhões.
Os golpistas apresentam os modelos de como deve ser a Eletrobras privatizada e para espanto da sociedade um deles é a Vale, segunda maior empresa global no minério ferro privatizada de forma fraudulenta. Uma rápida pesquisa contribui para comprovar o cinismo deste governo. Só golpistas poderia equiparar a Eletrobras a uma das empresas mais questionadas do mundo.
Para começar, após anos de massiva campanha pela venda da estatal nos anos 90, a então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi leiloada em maio de 1997. A primeira polêmica envolveu a cotação da estatal realizada pela corretora Marril Lynch, que a avaliou em R$ 10 bilhões. A empresa foi acusada de sub-avaliar jazidas e o conjunto do complexo industrial da empresa, com patrimônio real superior a R$ 100 bilhões.
Mais tarde, descobriu-se que a corretora era ligada à empresa Anglo American, participante do leilão. A estatal foi vendida por apenas R$ 3,3 bilhões. Para se ter uma idéia, esse valor significa menos do que o lucro da empresa em apenas três meses. No ano em que foi leiloada, o lucro líquido foi de R$ 12,5 bilhões, mais de três vezes o valor de sua venda.
Outra irregularidade foi a subestimação das reservas de minério sob controle da Vale. Segundo informações da própria CVRD, as reservas de minério de ferro de Minas Gerais e da Serra dos Carajás eram de 12,9 bilhões de toneladas em 1995, muito acima dos 3,2 bilhões de toneladas anunciadas na época da privatização.
Além disso, a privatização foi inconstitucional por vender reservas de urânio, que são de propriedade exclusiva da União, alienar milhões de hectares de terras e permitir a exploração de minérios na faixa de fronteira, o que não poderia ser feito sem a aprovação do Congresso Nacional.
Prejuízo para o Estado e para o conjunto da sociedade, especialmente os trabalhadores e trabalhadoras
Se os altos lucros da Vale provaram algo, foi o enorme prejuízo que o setor público amargou com a sua venda. Tais lucros não advêm de um suposto bom gerenciamento do setor privado, mas de uma situação externa favorável causada pelo aumento da demanda de matéria prima pela China e o conseqüente aumento do preço do minério.
Como se isso não bastasse, dias antes do leilão foram descobertas jazidas de minério, incluindo ouro, que não foram contabilizadas no preço mínimo de venda. Desta forma, fica fácil entender o motivo pelo qual os lucros da empresa foram alavancados automaticamente logo após a privatização.
Esse processo, aliás, ocorreu com o conjunto de estatais privatizadas nos anos 90. Durante anos, o governo do PSDB aplicou uma política de contenção de gastos e sabotagem deliberada como pretexto para a privatização. Após a venda, uma avalanche de números tentava legitimar a rapina do patrimônio público.
O primeiro resultado imediato da privatização fraudulenta foi a demissão de cerca de 3.300 pessoas entre maio e novembro de 1997. Foi a primeira ação do consórcio liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), tendo à frente o empresário Benjamin Steinbruch.
Esse corte no número de empregados foi realizado até novembro e representou 21,8% do quadro de pessoal.
A maior parte da redução foi obtida com o PDI (Programa de Demissões Incentivadas), com término previsto para o final de 1997, conforme informações da Folha de São Paulo, em 5 de janeiro de 1998.
Ao longo do processo pós privatização, os trabalhadores sempre foram as primeiras vítimas. No início da crise mundial, em 2008, a empresa administrada pela lógica pró-cíclica dos rentistas reagiu como tal e inverteu o bote: foi a primeira grande empresa a cortar 1.300 trabalhadores em dezembro daquele ano, exatamente quando o governo Lula tomava medidas contracíclicas na frente do crédito, do consumo e do investimento. A Petrobrás estatal não demitiu; reafirmou seus investimentos no pré-sal, da ordem de US$ 200 bilhões até 2014.
As privatizações sempre têm levado a demissões em massa dos trabalhadores concursados. No caso da CSN, por exemplo, de 45 mil trabalhadores concursados, sobraram apenas oito mil celetistas e 20 mil terceirizados. Essa política foi reproduzida em todos os demais casos.
Outro aspecto de prejuízo para o Estado e para a sociedade é o recolhimento de impostos. Fala-se que a Eletrobrás privatizada pagaria muito mais impostos para o Estado assim como a Vale. Um exame rápido nos números desde a privatização conforme texto de Lúcio Flávio Pinto, intitulado Imposto: não é com a Vale, publicado no blog A Vale que vale, em 19 de maio de 2012, confirma esta deturpação.
Entre 1997 e 2012 a Vale pagou 540 milhões ao erário público do estado do Pará, que tem as maiores e melhores jazidas do mundo. O record foi 2009: R$197 milhões. Em 1997, ano que entrou em vigor a Lei Kandir, que isenta de impostos produtos manufaturados ou não industrializados, a Vale pagou a expressiva quantia de R$18.828,27. A quantia foi subindo nos anos seguintes só atingindo a cifra de milhões quando a China começou a demandar vigorosamente o mercado brasileiro. Esta é a conta para os paraenses.
A conta para os rentistas aponta valores bem mais expressivos. Em 2011 as exportações totais do Pará foram de 18,3 bilhões de dólares (em torno de R$ 33 bilhões), sendo quase US$ 17 bilhões (ou mais de 90% do total, ou mais de R$ 30 bilhões) de produtos de origem mineral, em bruto ou semielaborados – isentos de impostos, portanto.
Por exemplo: a Vale exportou em 2011 97 milhões de toneladas de minério de ferro de Carajás com faturamento de 11,7 bilhões de dólares, correspondentes a quase 20 bilhões de reais. Pois bem: esses R$ 20 bilhões renderam R$ 30 milhões de ICMS, ou seja, 0,15%. Alíquota de desmoralizar qualquer erário; de massacrar qualquer povo e fazer a festa de outra nação, como a chinesa: desses 97 milhões de minério de ferro extraídos e exportados, 47 milhões (exatamente a metade do total) foram para a China, que pagou US$ 5,8 bilhões.
Privatização: uma fábrica de mortes e violação de direitos
Outras vítimas deste processo criminoso são as comunidades instaladas em torno das minerações privatizadas. Como a prioridade é a garantia do lucro dos rentistas, todo investimento em segurança das instalações e impactos ambientais decorrentes das atividades são ignorados o que causa sério processo de adoecimento das populações, além de colocar a vida de todos em risco.
O caso mais emblemático deste descaso resultado da privatização foi o rompimento da barragem da Samarco Mineração S.A, de propriedade da Vale e da BHP Billinton, empresa anglo australiana, as duas maiores mineradoras globais do minério de ferro.
O rompimento ocorrido em 15 de novembro de 2015 despejou cerca de 62 milhões de toneladas de rejeitos da mineração da Samarco e da Vale na natureza, destruindo as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, no município de Mariana, e de Gesteira, em Barra Longa. Foram 19 pessoas mortas e um aborto provocado pela lama. Hoje, 385 famílias aguardam a reconstrução de suas casas cujo prazo de término é apenas em 2020.
O rompimento contaminou mais de 620 km de curso d’gua passando pelos córregos Santarém, os rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce entre Mariana e Regência, comunidade da cidade de Linhares, no Espírito Santo. No trajeto, destruiu o centro urbano da pequena cidade de Barra Longa atingindo diretamente cerca de 100 casas, 200 quintais, destruiu praças, igrejas e escolas, além de atingir 90 propriedades rurais desorganizando a principal fonte de trabalho e renda do município.
É nesta cidade que está sendo investigada a contaminação dos moradores por níquel e arsênio conforme apontam exames feitos pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade. De 11 amostras feitas em duas ocasiões nos últimos 12 meses, todas apresentaram contaminações. Em toda a literatura sobre o tema, apenas foi indicada situações semelhantes com trabalhadores em minas de níquel após dez anos de exposição. Estes metais pesados podem causar câncer e outras graves doenças nos atingidos.
Seguindo o trajeto, a lama atingiu a Hidroeletrica Risoleta Neves, que tem 75% de propriedade da Vale e é referencia internacional de violação de direitos humanos durante sua construção concluída em 2004. A usina não produz energia desde 16 de novembro de 2015 e se tornou uma imensa barragem de rejeitos inviabilizando de forma permanente o trabalho e a cultura de pescadores e garimpeiros artesanais.
Descendo o rio Doce, a lama provocou o caos no abastecimento de água em centenas de pequenas localidades e em cidades como Governador Valadares, Colatina e Linhares que tem mais de 500 mil pessoas. Causou danos a agricultura e pecuária, matou cerca de 11 mil toneladas de peixe e praticamente inviabilizou a pesca, acabou com as economias locais baseadas no turismo, como as regiões litorâneas, além de causar prejuízos econômicos, culturais e religiosos gravíssimos aos povos indígenas que viram seu rio sagrado perdido para sempre.
Agora, sabe-se que a alardeada eficiência administrativa da Vale privatizada, além de recolher apenas 0,15% de ICMS no Pará e 2% de royalties ao país, nunca conseguiu reunir recursos para instalar uma simples sirene, que poderia ter salvo vidas levadas em Bento Rodrigues, enquanto brindava os acionistas com bilhões.
Todas as investigações da Polícia Federal, do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Estadual de Minas Gerais e Polícia Civil de Minas apontam que as mineradoras sabiam do risco de rompimento e não tomaram as medidas corretas. A PF confirmou que a Vale lançou 27% do total de lama depositado na represa rompida e em todo complexo de Germano, que a abrigava. Segundo o delegado, a Samarco não tinha controle desses depósitos, conforme o jornal Estado de Minas, de 10 de junho de 2016.
Infelizmente, casos de “acidentes” e perdas de vidas durante o processo de trabalho não são raros nesta região. Reportagem do site Vaidapé intitulada Da Vale ao caos, do caos à lama, de 12 de novembro de 2015, traz o depoimento do trabalhador identificado no texto como Makely Ka, ex-funcionário da Vale S.A, vivido e crescido em Minas Gerais.
Ele diz:
“Eu vejo publicações dizendo que a barragem estourou por causa de um tremor da terra, como se fosse uma catástrofe natural. Isso já está embutido nas próprias chamadas dos jornais. A imprensa fala: ‘Rompeu-se a barragem’. Quem rompeu-se meu amigo? ‘O distrito foi inundado pela lama’. Como foi inundado? Brotou lama do solo e inundou? A mídia fala como se não tivesse responsáveis, mas a Samarco e a Vale são as responsáveis por isso.”
O texto reconta histórias e faz um amplo diagnóstico dos problemas causados pelas minerações no Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais. Sobre a Vale, eles relembram:
“A poucos quilômetros de Bento Rodrigues, região em que o vazamento se iniciou, quase na divisa do distrito, está a Mina de Timbopeba – que também pertence à Vale. Foi lá que Makely trabalhou em 1994 e presenciou outras ‘catástrofes’ que não viraram notícia. ‘Eu vi pelo menos três acidentes. Eles não foram divulgados e essas notícias ficaram ali dentro. As mineradoras tem um controle muito grande sobre a informação que sai. Têm muito dinheiro em jogo, eles são muito poderosos’, denuncia.
“Uma das fatalidades vista por Makely chegou a virar pauta na imprensa local, em Mariana. Dois trens da Vale colidiram em cima de uma ponte na região e despencaram desfiladeiro abaixo. Os maquinistas que operavam a locomotiva morreram na hora. ‘Esse foi divulgado porque o pessoal do sindicato conseguiu fazer foto, mas não saiu nada em nenhum jornal do estado’, conta.
“Os outros dois acidentes caíram no esquecimento da história. Em um deles, conta o ex-funcionário, um caminhão Haulpak passou em cima de um carro dentro da mina e matou as pessoas que estavam dentro. O ocorrido mal havia sido digerido e, no mesmo ano, outro trabalhador caiu dentro de um britador primário e ‘virou minério”.
Diante destas poucas informações já é possível afirmar categoricamente que a Vale não é e nunca poderá ser exemplo para a Eletrobras e para qualquer empresa em uma sociedade que respeite os direitos humanos. È uma grande corporação que detém o poder que estava sobre controle do Estado e, portanto, na possibilidade de ser usada a favor do desenvolvimento nacional e que agora serve a pouco rentistas.
Por sua conduta antes mesmo do crime de Mariana, a Vale foi eleita em janeiro de 2012 a pior empresa do mundo pelo “Public Eye People´s”, premiação realizada desde 2000 pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna. Foi a primeira vez que uma companhia brasileira recebeu o prêmio conhecido como “Oscar da Vergonha”, que avalia os impactos socioambientais causados pelas empresas. O resultado foi divulgado durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça.
Diante deste cenário reafirma-se a necessidade do diálogo permanente com o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras no campo e na cidade em vista de criar uma cultura política de luta contra a violação dos direitos, cerne do projeto golpista.
É preciso dialogar reforçando os laços de solidariedade de classe que combatem o fascismo e apontam para a construção de um projeto de país baseado na democracia real, no respeito aos direitos e em um modelo de Estado que utilize as estatais como instrumento de desenvolvimento da economia e promoção da dignidade humana.
Por Thiago Alves, jornalista e militante do MAB