artigo: Joaquim Francisco de Carvalho e Roberto Pereira D’Araújo*

A indústria, o comércio, as comunicações, os bancos, a conservação dos alimentos, enfim, praticamente tudo depende de energia elétrica.

Mais de 70% da eletricidade consumida no Brasil vêm de usinas hidrelétricas e a geração de energia é apenas uma das utilidades de seus reservatórios, ao lado de outras, importantes, como o abastecimento de água, a irrigação, o controle de enchentes, etc.

Tudo isto requer despesas permanentes em preservação ambiental e a experiência mostra que investidores privados relutam em fazer tais despesas. Por esta razão, até nos Estados Unidos – onde o sistema elétrico é privado, com matriz de base térmica – as grandes hidrelétricas pertencem a entidades públicas, como a Tennessee Valley Authority, o US Army Corps of Engineers e a North Western Energy Company. A também estatal Bonneville Power  Administration opera toda a integração entre as grandes usinas e coordena o intercâmbio com a estatal canadense British Columbia Hydro. Entretanto, algumas hidrelétricas menores são privadas, mas a soma das capacidades de todas elas é muito menor do que a capacidade das grandes hidrelétricas estatais. Quanto às termelétricas, pertencem a grupos privados, que controlam também as usinas nucleares.

Os problemas da Eletrobras (holding e subsidiárias) devem-se principalmente ao empreguismo e à interferência corruptora de alguns políticos.

Nada melhorou com as privatizações, iniciadas em 1995. Para justificá-las, dizia-se que o Estado não tinha recursos para investir na expansão do sistema, papel que caberia ao empresariado. Prometia-se que, no ambiente competitivo do mercado, as tarifas ficariam mais baratas e afirmava-se que, livre das estatais, o governo teria mais recursos para os programas de ensino básico, saúde e segurança pública.

O resultado foi o oposto do prometido. Os recursos para educação, saúde e segurança continuaram escassos e as tarifas ficaram muito mais caras, porque o modelo originalmente projetado pela empresa inglesa contratada para planejar a reestruturação do sistema elétrico não é adequado para o Brasil.

Visando mercantilizar a eletricidade (que é um monopólio natural) convertendo-a em mercadoria, este modelo cria os mercados “livre” e “cativo” e instâncias intermediárias como as Comercializadoras e a Câmara de Comercialização.

Isto pode funcionar em países de matriz elétrica térmica, como a Inglaterra, mas não no Brasil, país continental, com matriz hídrica e usinas operando com regimes fluviais quase opostos.

Hoje, o “mercado livre” representa 27% do consumo do país. Durante 10 anos, os preços nesse mercado chegaram a apenas 10% das tarifas do “mercado cativo”.

O empresariado pouco investiu na expansão do sistema e, para evitar apagões, o governo obrigou a Eletrobras a entrar como sócia minoritária em parcerias ruinosas, nas quais a repartição de custos e ganhos não é transparente.

Dessa cadeia de equívocos resultou que, entre 1995 e 2017, as tarifas de eletricidade para o setor residencial subiram mais de 55% e as do setor industrial subiram cerca de 130%, acima da inflação. Por isto, as famílias de baixa renda encontram dificuldade para pagar as contas de energia – e inúmeras empresas industriais fecharam as portas, desempregando milhares de operários e técnicos qualificados.

Vê-se então que, caso a Eletrobras seja privatizada, a tendência é que o sistema elétrico fique estagnado e o Brasil volte a ser um simples exportador de commodities. E se a privatização depender de capitais externos, os novos controladores poderão atribuir prioridade às remessas de lucros, pesando sobre as contas externas e descapitalizando ainda mais o país.

Por conseguinte, em vez de privatizar a Eletrobras, o governo deveria recuperá-la, blindando-a de influências políticas e submetendo-a a uma administração profissional, supervisionada por um órgão de controle integrado por especialistas de notória idoneidade e capacidade técnica, eleitos por federações da indústria e do comércio, que são os maiores interessados na qualidade dos serviços de eletricidade e na modicidade tarifária. Esse órgão teria assento nas reuniões da diretoria executiva, com poder de veto sobre decisões relativas a concorrências, contratações de pessoal e publicidade. Uma vez feitoisso, a “nova” Eletrobrás celebraria contratos de desempenho com o governo.

As hidrelétricas ainda pertencentes à Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletronorte e metade de Itaipu) respondem por uma oferta da ordem de 170 milhões de MWh por ano. Como essas hidrelétricas têm idades em torno de 30 anos, o capital investido está quase todo amortizado, de modo que, em média, o custo da energia nelas gerada está em torno de R$ 39/MWh. Esta energia poderia ser repassada às distribuidoras por uma tarifa de R$ 160/MWh, muito inferior aos sufocantes R$ 250/MWh pretendidos pelo governo, no projeto de privatização.

Assim, supondo-se o grupo Eletrobrás seja mesmo despolitizado e profissionalizado, o seu lucro pode chegar a R$ 20 bilhões por ano, superando o valor que o governo pretende arrecadar com a sua venda, que é de apenas R$ 12 bilhões.

Aliás, só o know how acumulado ao longo dos 30 anos de existência do Cepel (Centro de Pesquisas da Eletrobrás) vale mais do que isso.

Em vez de abrir mão desse extraordinário fluxo financeiro, o governo deveria destinar uma parte, digamos 50%, à “nova” Eletrobras, para investimentos na expansão do sistema elétrico e no seu desenvolvimento tecnológico. Outros 30% iriam para o Tesouro Nacional e os 20% restantes capitalizariam um fundo soberano a ser criado no BNDES ou no Banco do Brasil, cujas ações seriam vendidas ao público.

As distribuidoras estaduais que foram “penduradas” na Eletrobras seriam restituídas aos respectivos Estados, para serem despolitizadas e profissionalizadas ou, alternativamente, privatizadas.

As termelétricas a carvão seriam desativadas e aquelas a gás natural ficariam de reserva.

*Autores:
. Joaquim Francisco de Carvalho, doutor em energia pela USP, foi engenheiro da Cesp, chefe do setor industrial do Ministério do Planejamento e diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear).

. Roberto Pereira D’Araújo, mestre em engenharia elétrica, é diretor do Ilumina. Foi chefe de departamento e membro do Conselho de Administração de Furnas.

Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico

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