Seis meses depois da implementação da Reforma Trabalhista, aprovada em novembro de 2017, os setores mais afetados pelas mudanças na legislação são aqueles que convivem com baixos salários, alta rotatividade e informalidade, mas as consequências também serão sentidas pela classe média, diz Barbara Vallejos Vazquez* em entrevista ao IHU On-Line.
“Muitos setores ainda estão começando a aplicar as novas regras. Infelizmente, penso que a Reforma será pesada para os setores mais pauperizados, mas não irá poupar as ocupações de classe média. Diversas empresas públicas que geram empregos estáveis e com maior remuneração, como Eletrobras, Caixa, BB, Petrobras, abriram programas de demissão voluntária após aprovação da Reforma. Estes empregos estão sendo substituídos por formas atípicas de contratação. O Banco do Brasil, por exemplo, abriu este ano uma agência completamente terceirizada na Zona Leste de São Paulo, empregando trabalhadores que recebem aproximadamente 75% menos que um bancário”, informa.
Na avaliação dela, além de a Reforma Trabalhista não resolver os problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro, ela “naturaliza as desigualdades, ao invés de buscar corrigi-las”. Como exemplo dessa naturalização, Barbara cita a criação de “diversas modalidades de contrato de trabalho, com diferentes níveis de proteção e acesso a direitos”, como o trabalho intermitente. E adverte: “ao permitir os contratos intermitentes, a legislação autoriza o pagamento de salários mensais menores que o salário mínimo. O efeito destas ‘inovações’ no mercado de trabalho é a redução do salário médio anual, gerando o empobrecimento de uma grande parcela dos trabalhadores no Brasil”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Passados seis meses da entrada em vigor da Reforma Trabalhista, quais são os principais impactos no mercado de trabalho de modo geral?
Barbara Vallejos Vazquez – Segundo demonstrou o artigo “Seis meses de reforma trabalhista: um balanço”, que Euzébio Jorge da Silveira, Ana Luiza Matos Oliveira e eu escrevemos em parceria, a reforma tem impactado setores marcados por baixos salários e alta rotatividade. As principais ocupações impactadas pelo contrato intermitente, por exemplo, foram assistente de vendas, servente de obras e faxineiro. Desde o início, críticos da reforma indicaram seu alto potencial de aumentar a desigualdade.
IHU On-Line – A flexibilização do mercado de trabalho, bradado pela reforma, se efetivou na geração de mais empregos? Quais os impactos nos empregos informais?
Barbara Vallejos Vazquez – O emprego informal sempre foi alto no Brasil. Nos últimos anos, com a agudização da crise econômica, o setor informal se expandiu rapidamente, lado a lado com o aumento do desemprego aberto. A Reforma não resolve esta questão estrutural do mercado de trabalho brasileiro. O volume de empregos não pode ser determinado pela legislação trabalhista. Esta é uma falsa premissa econômica. O que a Reforma faz, em realidade, é dar legitimação jurídica a formas até então consideradas fraudes trabalhistas, como a existência de autônomos com exclusividade, intermitentes e terceirizados. Passa-se, então, para a formalidade, formas precárias de trabalho. Isso pode alterar o indicador estatístico, mas não muda a realidade precária destes empregos.
IHU On-Line – Pelas análises que você tem feito, os setores mais impactados são aqueles com trabalhadores com mais baixa remuneração e alta rotatividade. Gostaria que detalhasse quais são esses impactos e analisasse como a precarização afeta ainda mais esses trabalhos.
Barbara Vallejos Vazquez – Os dados dos primeiros seis meses da Reformademonstraram forte impacto em setores que convivem com baixos salários, alta rotatividade e informalidade, como faxineiros, serventes de obras, vigilantes etc. Entretanto, nesse período, a MP 808 ainda tramitava no Congresso Nacional, deixando dúvidas sobre as regras da Reforma. Muitos setores ainda estão começando a aplicar as novas regras. Infelizmente, penso que a Reforma será pesada para os setores mais pauperizados, mas não irá poupar as ocupações de classe média. Diversas empresas públicas que geram empregos estáveis e com maior remuneração, como Eletrobras, Caixa, BB, Petrobras, abriram programas de demissão voluntária após aprovação da Reforma. Estes empregos estão sendo substituídos por formas atípicas de contratação. O Banco do Brasil, por exemplo, abriu este ano uma agência completamente terceirizada na Zona Leste de São Paulo, empregando trabalhadores que recebem aproximadamente 75% menos que um bancário.
IHU On-Line – O setor de serviços demanda muita mão de obra, mas é comum que isso ocorra apenas em determinadas épocas do ano, como no caso do comércio, nos finais de ano, e em hotéis, bares e restaurantes em cidades turísticas, nos períodos de férias. De que modo a reforma tem afetado a relação entre os empregadores e trabalhadores desse setor que acaba gerando demanda por mão de obra em épocas específicas?
Barbara Vallejos Vazquez – O argumento da sazonalidade em determinados setores é alvo de debate há muitos anos. O Trabalho Temporário já era autorizado no Brasildesde 1974 pela Lei 6.019. A partir da aprovação da Lei 13.429/2017, que foi um preâmbulo da Lei da Reforma Trabalhista, pode-se estender a duração de um contrato temporário para até nove meses. O argumento da sazonalidade se perde, nesse caso. Como um emprego sazonal pode durar ¾ de um ano? Nesse caso, fica claro que, em primeiro lugar, pretende-se privar os trabalhadores das verbas rescisórias, além de possibilitar aumento do contrato temporário para mais setores de atividade. Imagine o impacto que este contrato pode ter para os docentes de escolas públicas e privadas, por exemplo.
IHU On-Line – Em que outros setores o trabalho intermitente passou a ser realidade?
Barbara Vallejos Vazquez – Foram impactados comércio, construção civil, vigilância e trabalhadores rurais. O contrato intermitente não está ligado estritamente ao setor de serviços, como muitas vezes se imagina. Três ocupações tipicamente industriais aparecem no ranking de 10 maiores ocupações impactadas pelo contrato intermitente: alimentador de linha de produção, soldador, mecânico de manutenção de equipamentos.
IHU On-Line – E sobre as terceirizações, o que esses seis meses de nova legislação têm revelado?
Barbara Vallejos Vazquez – Até a aprovação da Lei de Terceirização e da Reforma Trabalhista, toda terceirização de atividade fim ou atividade principal da empresa contratante era considerada fraude trabalhista, em consonância com a Súmula 331 do TST. Isso porque, neste caso, era explícito que o objetivo do processo de terceirização seria a mera redução de custo do trabalho, caindo por terra os argumentos de especialização ou de aumento da flexibilidade na produção.
No setor bancário, por exemplo, desde o início dos anos 2000, convive-se com a explícita terceirização de atividade-fim, realizada por meio dos correspondentes bancários, “parcerias” entre empresas do comércio varejista e uma instituição financeira para a prestação de ampla gama de serviços financeiros: saques, extratos, abertura de contas correntes, poupança, operações de crédito, operações de câmbio etc. Como o trabalho é realizado por empregados do comércio, que recebem, em média, 75% menos que um bancário, os bancos lucraram muito com esse modelo de negócios. Porém, até março de 2017, esta prática era considerada ilícita. Se um trabalhador de correspondente acessasse a Justiça do Trabalho, teria altas chances de ver reconhecidos seus direitos.
É o que demonstrou pesquisa sobre as Decisões Judiciais, realizada a partir de metodologia desenvolvida pela Professora do Instituto de Economia da Unicamp, Magda Barros Biavaschi: no caso dos correspondentes, o Tribunal Superior do Trabalho – TST ofereceu resistência a esta forma de terceirização em 72,9% dos casos, concedendo ao trabalhador equiparação de direitos em relação aos bancários ou reconhecimento do vínculo com a empresa contratante. Agora, com a Reforma, os trabalhadores já não poderão recorrer à equiparação de direitos na Justiça do Trabalho – JT. Terão que aceitar receber ¼ da remuneração média de um bancário para realizar trabalho de conteúdo idêntico.
IHU On-Line – Em poucos meses em vigor, a nova legislação trabalhista já provocou a redução de processos tramitando na Justiça do Trabalho. Como analisa esse dado? O que isso significa do ponto de vista do trabalhador?
Barbara Vallejos Vazquez – A Reforma é construída de forma a enfraquecer as instituições de regulação do trabalho, sejam sindicatos ou Justiça do Trabalho. No caso da Justiça do Trabalho, a gratuidade da justiça foi restringida e criou-se a possibilidade de que o trabalhador, caso perca a ação, deva arcar com os honorários e demais custos do réu. A mídia veiculou diversos casos em que juízes impuseram altas custas a trabalhadores, como o de uma bancária que foi condenada a pagar 67 mil reais ao Itaú, para cobrir custas de um processo que perdeu. Isso pode ter gerado receio dos trabalhadores em reclamarem seus direitos na Justiça. Mas é importante destacar que o número de reclamações na Justiça voltou a crescer e que, em geral, a Justiça do Trabalho é protetiva ao trabalhador, pois a Reforma não destituiu completamente a CLT e não alterou a Constituição.
IHU On-Line – De que forma essa nova legislação trabalhista tem afetado a coleta e análise de dados acerca do mundo do trabalho no Brasil hoje?
Barbara Vallejos Vazquez – Do ponto de vista estatístico, a Reforma cria novos desafios, pois possibilita a formalização de contratos anteriormente considerados fraudulentos: intermitentes, autônomos com exclusividade e os de terceirização de atividade-fim. Traz, ainda, dificuldades para a mensuração da desocupação. Um intermitente que não é convocado a realizar serviços por mais de um ano, em tese, possui vínculo ativo de emprego, embora não esteja efetivamente empregado e não receba nenhuma remuneração. Então, os conceitos de desocupação e informalidade precisam ser reinterpretados. Além disso, a mensuração da terceirização é um desafio que a estatística do trabalho ainda não enfrentou no Brasil.
IHU On-Line – Quais os impactos da legislação pós-reforma no nível de emprego? Em alguma medida ela estimulou a criação de empregos formais? Por quê?
Barbara Vallejos Vazquez – As taxas de desemprego aberto passaram de 12,2%, no trimestre imediatamente anterior ao início da vigência da Reforma Trabalhista (agosto a outubro 2017), para 12,9% no dado mais recente (trimestre de fevereiro a abril de 2018), segundo a Pnad Contínua do IBGE. A Reforma não gerou mais postos de trabalho e a taxa de desemprego aberto apresentou elevação de 0,7 pontos percentuais no período. Contudo, o último resultado do Caged (maio de 2018) é alarmante: o saldo de empregos foi baixo, em torno de 33 mil postos gerados e 10% das novas vagas foram na modalidade intermitente, demonstrando que estamos combinando baixo crescimento do emprego, com piora da qualidade dos postos formais.
IHU On-Line – Uma das marcas do Brasil são as desigualdades. Em que medida podemos associar a implementação da Reforma Trabalhista com essa realidade do país?
Barbara Vallejos Vazquez – A heterogeneidade estrutural sempre foi uma marca do mercado de trabalho brasileiro, expresso por uma grande desigualdade nas condições de trabalho e níveis salariais. A reforma trabalhista, longe de contribuir na modernização da estrutura produtiva brasileira, retira a segurança mínima de trabalhadores já pauperizados. Os direitos do trabalho buscam reduzir as assimetrias. Ao desconstituir parte destes direitos, a Reforma naturaliza as desigualdades, ao invés de buscar corrigi-las. Foram criadas diversas modalidades de contrato de trabalho, com diferentes níveis de proteção e acesso a direitos. Ao permitir os contratos intermitentes, a legislação autoriza o pagamento de salários mensais menores que o salário mínimo. O efeito destas “inovações” no mercado de trabalho é a redução do salário médioanual, gerando o empobrecimento de uma grande parcela dos trabalhadores no Brasil.
IHU On-Line – O Governo Federal segue no discurso da recuperação econômica, afirmando que os empregos estão voltando a ser ofertados. Mas isso é real a partir da análise dos dados? E quais suas projeções para o segundo semestre de 2018?
Barbara Vallejos Vazquez – Os dados sobre mercado de trabalho são sofríveis. A taxa de desemprego aberta é de 12,9% e a taxa de subutilização da força de trabalho aponta para um contingente de cerca de 27 milhões de trabalhadores que estão desocupados, ou possuem emprego, mas trabalham menos horas do que gostariam, ou trabalhadores que desistiram de procurar emprego. O consumo das famílias é uma componente fundamental para o crescimento econômico no Brasil e depende diretamente da melhora dos níveis e condições de ocupação. Com o mercado de trabalho em frangalhos dificilmente esse indicador reagirá de forma robusta em 2018. O Banco Central começou o ano afirmando que o Brasil cresceria aproximadamente 3% em 2018. Após sucessivas revisões, a expectativa de crescimento do PIB agora está em 1,6%. (fonte: Unisinos)
*Barbara Vallejos Vazquez é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas – Unicamp e técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese.