artigo: Clemente Ganz Lúcio[1]
Jéssica Naime[2]
O debate em torno das privatizações, por vezes, apresenta-se de forma maniqueísta: se o setor público é eficiente ou ineficiente na prestação dos serviços, se as empresas dão lucro ou prejuízo ao Estado, e se a venda de ativos públicos resolve ou não um problema de déficit nas contas públicas.
Há muito de ideologia no debate acerca de uma suposta superioridade do desempenho do setor privado sobre o público e dos recorrentes prejuízos causados por empresas controladas pelo Estado. Além disso, é preciso olhar além: as empresas estatais desempenham papel importante no desenvolvimento de uma sociedade e são, ao mesmo tempo, instrumentos significativos de política econômica e, também, de política externa, podendo desempenhar relevante papel na geopolítica internacional[3].
São muitas as razões: as empresas estatais são importantes para promover grandes investimentos de longo prazo; prover serviços essenciais à vida; assegurar um nível de concorrência adequado (oferta e preço) em mercados concentrados; investir em ciência, tecnologia e inovação; atuar como instrumento de políticas anticíclicas; assegurar o controle de bens escassos que são insumos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva; atuar em nome do interesse e da soberania nacionais; e tomar decisões empresariais orientadas pelo interesse coletivo.
Muitos setores de atividade econômica, por suas características intrínsecas, necessitam de investimentos vultosos e de longo prazo de maturação, que podem durar décadas, tais como estradas e ferrovias. Em muitos casos, embora possam não ser do interesse privado sua exploração, são fundamentais ao desenvolvimento econômico e social e, por isso, a sociedade decide arcar com seus custos.
Há, por sua vez, serviços essenciais à vida – como captação, tratamento e distribuição da água e geração, transmissão e distribuição de energia elétrica – que, sob pena de colocarem em risco a economia do país e a sobrevivência da população, não podem ser tratados como mercadoria. Problemas no atendimento à população associados à ineficiência da gestão privada desses serviços têm sido a principal justificativa para sua reestatização em muitos dos países em que foram privatizados.
No Brasil, a Constituição define o provimento de uma série de bens e serviços como propriedade/competência do Estado – União, estados e municípios. Dentre eles estão as jazidas e demais recursos minerais; potenciais de energia elétrica; tratamento e distribuição de água e coleta de esgoto; gestão dos recursos hídricos; infraestrutura aeroportuária; serviços e instalações nucleares; serviços de transporte; e serviços postais.
Para assegurar a oferta e preços adequados, é preciso considerar que alguns setores têm estrutura de mercado muito concentrada: quando não são monopólios naturais, são segmentos de poucos participantes com expressivo poder de mercado (oligopólios), principalmente devido às barreiras à entrada de novos atores. Essa é uma razão adicional para que o Estado tenha participação nesses mercados.
Empresas e centros de pesquisa estatais desempenham importante papel nas economias modernas a partir dos investimentos que realizam em projetos de ciência, tecnologia e inovação, pouco atrativos à iniciativa privada, uma vez que requerem longo prazo de maturação e se caracterizam pela elevada incerteza. Assim, os recursos destinados por empresas estatais são decisivos em qualquer projeto de desenvolvimento que almeje a redução da dependência tecnológica frente a outros países.
A atuação e os investimentos estatais também podem ser fatores de estabilização econômica, do nível de emprego e da renda, à medida que, por não obedecerem apenas à lógica de mercado, asseguram um mínimo de expansão da demanda agregada, atuando como instrumento de políticas anticíclicas.
Ademais, bens escassos e que são insumos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva, em especial petróleo, gás e seus derivados, são estratégicos para o desenvolvimento econômico e social, e os poucos países que detêm grandes reservas e competência para explorá-las procuram protegê-las e utilizá-las da melhor maneira possível.
Por todos estes fatores, em nome do interesse e da soberania nacionais, diversos países têm adotado medidas de restrição ao investimento estrangeiro em setores estratégicos, principalmente àqueles na forma de fusões e aquisições. Caso emblemático é a China, que, por meio de suas grandes empresas estatais, tem adotado política de investimento em nível mundial.
Importante lembrar, por fim, que as empresas estatais diferem das privadas na medida em que, por sua natureza, deveriam tomar decisões orientadas pelo interesse coletivo e não apenas por critérios econômico-financeiros. É possível gerir empresas estatais de forma eficiente, sob a perspectiva do interesse público.
A análise de experiências em países desenvolvidos mostra a viabilidade de diferentes tipos de gestão no setor público, com controle social, que possibilitam reduzir acentuadamente problemas relacionados à corrupção e à apropriação indevida por interesses privados.
[1]Diretor técnico do DIEESE
[2] Supervisora Técnica do DIEESE
[3] Ver Nota Técnica 189 Empresas Estatais e o Desenvolvimento: considerações sobre a atual política de desestatização. In: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2018/notaTec189Estatais.html
Publicado originalmente em Poder 360
Urbanitários em luta: contra à privatização do setor elétrico e do saneamento.
ÁGUA, ENERGIA E SANEAMENTO NÃO SÃO MERCADORIAS!