Debate no CineBancários, na terça, 27/8, apontou consequências da privatização da água sobre meio-ambiente e sobre as vidas de cada um de nós
Na secura do cerrado do sertão baiano brasileiro uma tragédia ambiental expõe um problema mundial. A água, ou melhor, a ausência dela em Correntina poderia ser considerada uma questão localizada não fosse a mesma tragédia em outra cidade distante. Em Petorca, no Chile, as duas cidades separadas por milhares de quilômetros fazem sentido uma para a outra. A proposta do documentário “O Verde Está do Outro Lado” foi justamente mostrar que os processos de privatização da água causam um problema sistêmico e que essas duas cidades não são meramente problemas isolados
Correntina fica no interior da Bahia, lá onde a terra forja o homem e a mulher à semelhança dela: fortes e resistentes. Petorca é cidade que fica a 180 quilômetros de Santiago, capital do Chile. A mesma terra forja gente semelhante ao cerrado brasileiro. O documentário a descreve com um povoado rural que sofre com uma seca impiedosa há 10 anos e com as consequências da Constituição de 1981 do Chile.
A água que vinha pelo rio chega de caminhão-pipa
Lá nas terras que um dia foram mandadas por Pinochet e moldados pelo neoliberalismo bem ao gosto dos Chicago Boys e do capitalismo selvagem, uma concessão da Carta Magna selou o destino e as vidas de famílias de agricultores familiares. É triste ver a separação entre quem consegue plantar e comer quem só tem dinheiro para comprar a água que chegava pelo rio e agora vem de caminhão-pipa. No Chile a água é privatizada e somente o custo de transporte de caminhões-pipa é de R$ 5 milhões aos cofres públicos por dia.
Quer dizer, é o mesmo que foi feito com a privatização da Previdência chilena. Os benefícios mínimos foram cortados e o governo agora gasta para não deixar aposentados morrerem de fome ao completar benefícios para que cheguem ao salário mínimo chileno.
A narrativa da câmera do documentário do diretor, Daniel A. Rubio, é aquela do testemunho. Vizinhos de cerca convivem com uma distância de classe muito grande que se enxerga pela cor. O chão de quem consegue pagar pela água para irrigar as plantações é verde. O outro é triste. O abacate de um fazendeiro está apetitoso. No outro lado da cerca, o abacate é preto, seco, impossível de ser vendido ou comido.
Como peixe fora d’água
Os depoimentos do filme tecem uma teia complexa entre a nossa cegueira para as coisas que são decididas nos parlamentos e para a consequência dessas decisões nas nossas vidas. O mercado da água criado no Chile e que, por uma outorga permite que endinheirados tomem conta das cabeceiras dos rios, armazenem água e sequem as trilhas de águas que chegavam aos pequenos agricultores foi criado em 1981, é complexo e perverso.
Há barões da água e uma consequência que o sistema e o sujeito podem ser ilustrados por uma simples frase de agricultor. Durante uma reunião da comunidade com a empresa que manda na água de Petorca, o agricultor familiar José Valdivia resume esse mundo em que as 26 pessoas mais ricas do mundo ficam com 50% de toda a renda produzida pela humanidade. “Vamos morrer como um peixe fora d’água”, diz ele em sua filosofia mais que certeira.
Na Correntina baiana, a tragédia só não é semelhante ou pior porque tem resistência, mobilização e luta. Não fossem assentados do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a água privatizada não existiria mais e os agricultores de pequeno porte que morressem de sede.
Jornada no parlamento
E, mesmo assim, a ameaça é permanente. O filme também mostra a jornada de luta do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) para conter a Medida Provisória 844 no ano passado. Mobilização de indígenas, assentados, gente de coragem de todo o tipo fizeram o combalido, corrupto e golpista governo Temer retroceder à época e impedir que a MP liberasse a privatização da água por município brasileiro, o mesmo que ocorre com 90% da água chilena.
A vitória das forças políticas de esquerda no parlamento, ou melhor, na Comissão de Recursos Hídricos da Câmara dos Deputados, foi o primeiro tempo de uma derrota que o governo de Jair Bolsonaro impôs na etapa complementar no jogo da luta pela água como bem público.
A MP foi reeditada pelo governo Bolsonaro e já passou de mãos em direção ao Plenário. Ou melhor, já criou uma janela de oportunidade para todo o tipo de ganancioso que lucra com a morte e a fome.
Matar de sede
Após a exibição do documentário de 1h11, o CineDebates formou um trio de esclarecedores da questão da água do calibre de uma Champions League. O presidente da Agapan, o biólogo Francisco Milanez e o diretor de Formação e Cultura do Sindiágua, Geovane Martins Teixeira situaram a plateia sobre o estado da arte do avanço do capitalismo e sua crueldade que pode ser resumida à seguinte ideologia: matar de sede em vez de matar a sede. O debate foi mediado pelo jornalista e vice-presidente da Agapan, Heverton Lacerda.
Milanez elucidou o papel da água no sistema amazônico e o efeito que o fogo tem sobre as nossas vidas. Lembrou que a contribuição da floresta não é como pulmão do mundo, fornecedora de oxigênio. Isso porque ela fornece oxigênio para ela própria. A Floresta Amazônica é a maior captadora de água do Oceano Atlântico e criadora de água potável por meio das chuvas e dos rios. Mas tem o fogo.
“A água é a substância com maior calor específico. É preciso muito calor para elevar a temperatura dela. Então, ela é responsável pela manutenção de uma temperatura regular na Amazônia. Qualquer animal que deixe aquele ecossistema morre por causa da variação de temperatura. Já tem períodos de seca na Amazônia. E esse é o maior risco. A Amazônia é resiliente. Mas tem uma hora que a destruição pode ser irreversível. E quando ela entrar em colapso…”, ponderou Milanez.
Então, matar a floresta a fogo traz consequências climáticas que serão sentidas em toda a América Latina. Correntina e Petorca são exemplos desse efeito, digamos, de destruição da floresta e da devastação do ambiente para lucrar com mineração, exploração de minérios, claro, privatizando a água e desmatando.
Bebendo esgoto
Para deixar bem claro que a falta de água é um problema da humanidade e que tem a ver com aquecimento global e com essa visão de mundo que só pensa em lucro e exploração, Geovane citou conflitos. É tão mundial a questão da água que o conflito na Faixa de Gaza entre israelenses e palestinos tem na água boa parte da explicação.
“Esse filme representa mais um dos conflitos existentes pela água. Existem várias guerras que já foram travadas pela água e ainda vão ser travadas. Aqui no Rio Grande do Sul tivemos um cartel da água, denunciado pelo deputado [estadual] Jefferson Fernandes, em Uruguaiana. Foi uma das cidades onde a iniciativa privada conseguiu chegar lá. Em Uruguaiana, praticamente, eles estão bebendo esgoto in natura, porque a empresa que prometeu tratar o esgoto lá ela larga o esgoto acima do rio. O esgoto vem descendo até a captação de água do rio para o tratamento”, contou Geovane.
Filmes e debates como o do CineDebates na terça-feira, 27/8, no CineBancários, ajudam a entender aquilo que escondem da gente. Cada frase infeliz de um governante, cada aprovação no Congresso Nacional traz consequências para a qualidade da comida que comemos, da água que bebemos. Tem relação direta com a nossa vida mesmo que a gente ignore.
Como diz um agricultor familiar no documentário O Verde Está do Outro Lado em sua imensa sabedoria. “A chuva é a vida da terra”.
Fonte: Imprensa SindBancários