Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo – 2/4/2023
Autor: Roberto Pereira D’Araújo – Diretor do Instituto Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético)
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Capacidade técnica foi reduzida a índices jamais vistos entre gigantes do setor
O Brasil aborda esse tema como se fosse a venda de uma estatal qualquer, esquecendo-se da impressionante singularidade do sistema elétrico nacional. Transferir o controle da Eletrobras para o capital privado envolve geografia, rios, lagos, água, sol, meio ambiente e clima. Não se trata apenas de um prédio com escritórios.
Países cuja eletricidade provém significativamente de hidroelétricas não privatizam suas empresas. Canadá, Suécia, Noruega, Índia, Rússia e China estão nessa lista. Mesmo os EUA, com uma proporção menor, têm suas hidroelétricas ligadas ao Exército. O Brasil, apesar da maior vinculação com a energia dos rios, é o único fora desse seleto clube.
Apenas 8% das nossas hidroelétricas foram projetadas e construídas pelo setor privado. As que hoje estão sob controle do capital ou foram compradas prontas ou erigidas em parceria. A recente expansão de quase 17 GW, mais do que Itaipu, só foi viabilizada através das parcerias onde a Eletrobras é minoritária. Vamos abrir mão dessa última instância?
É inconcebível que se aceite que a Eletrobras tenha sido privatizada por pouco mais de R$ 33 bilhões. A americana Duke Energy, com a mesma capacidade de geração do mesmo produto, o kWh, tem um valor de mercado de US$ 82 bilhões. A Eletrobras não pode valer menos de um décimo disso. Com aprovação de regras estranhas ao mercado, caso a União seja obrigada a reassumir o controle, seria forçada a pagar o triplo do valor de mercado das ações vendidas —um ardil capaz de gerar prêmio aos grupos que privatizaram. A possibilidade de dano é real, eis que o risco do contrato é flagrante. Tal ato lesivo é inadmissível e proibido por lei.
A regulamentação limitando o poder de voto a 10% no conselho administrativo da companhia é incapaz de evitar acordos não explícitos entre acionistas. Evidentemente, ela foi imaginada apenas para que o Estado, com cerca de 40%, não consiga pautar projetos de interesse público nessa “capitalização”.
A Lei das Estatais, criada para evitar a influência política, despreza o fato de que o atual presidente da empresa foi indicação política do ex-presidente Michel Temer (MDB) em 2016, tendo atuado na Eletrobras até 2021 e se retirado imediatamente para outra empresa de energia, a Vibra. Após a privatização, retorna à Eletrobras revelando que interesses privados não seguem regras imaginadas para o Estado. Tal prática é proibida em empresas públicas de países republicanos, onde quarentenas mínimas tentam resguardar conflitos de interesse.
Falhas do modelo mercantil e privado, que só encareceu a tarifa sem sequer um diagnóstico, exigiram outros sacrifícios da Eletrobras. Na realidade, através de doses excessivas de um princípio básico das hidroelétricas, a amortização de investimentos, a estatal foi a única responsável por tentar amenizar esse encarecimento.
A Eletrobras precisa ser reconstruída. Sua capacidade técnica foi reduzida a índices nunca vistos em empresas semelhantes. O número de funcionários por capacidade de geração (MW) atingiu um sexto da média das grandes empresas internacionais. A competência está na experiência acumulada por mais de 50 anos de existência, não nos prédios.