artigo: Roberto Pereira D’Araujo*
São raros os países que têm a hidroeletricidade como base de sua energia elétrica. Apenas Noruega, Canadá, Venezuela, Suécia e Brasil estão nesse grupo. A maior produtora de hidroeletricidade é a China, mas seus mais de 800 TWh representam apenas 15% do seu consumo. Nenhum desses países têm essa estrutura em mãos privadas. Alguém poderia desconfiar de tendências socialistas no caso da Venezuela, mas todos os outros parecem isentos desse viés ideológico.
O Brasil, se vender a Eletrobras, passará a ser o único do grupo que abre mão do controle do estado, apesar dessa singularidade e da externalidade essencial da água. Infelizmente, bizarros planos e muita desinformação dominam o debate no nosso gigante adormecido. Aqui, defende-se com galhardia o que deveria ser uma derrota. Ressurgindo da década de 90, há a opinião que de que estatais devem ser vendidas porque não se consegue blindá-las de influências políticas. Em palavras bem mais simples, o Brasil não pode ter estatais porque “o estado não tem jeito”. Se isso é estratégia digna de uma sociedade, estamos prestes a ser ainda mais devorados pelo estado, pois, se há ainda um resquício de eficiência nele, ela está nas empresas e não nos ministérios ou no congresso.
A desinformação, se fosse uma montanha, seria o Everest. Aqui, teses são veiculadas na imprensa sem qualquer preocupação de demonstração de veracidade. A mais recente é a da “ineficiência” da Eletrobras como se esse defeito surgisse espontaneamente de dentro dos seus escritórios. Nesse momento de delírio, esquece-se quem é o controlador da empresa e as políticas que a ela foram impostas. Mais ainda! Amnésia total sobre os braços do setor privado que participavam felizes da fragilização continuada da empresa quando ocorriam.
Mas, para mostrar com um exemplo concreto sobre o nível de tapeação, peço a paciência dos leitores para ir a fundo em uma das políticas destrutivas mostrando com números o enorme fosso entre o veiculado e a realidade. Para isso vou lembrar o que ocorria em 2011 quando a FIESP lançou uma campanha defendendo a redução tarifária, sob o nome “Energia a preço justo”. Surpreendentemente para quem tenta ver o Brasil com óculos ideológicos, o governo Dilma atendeu prontamente o desejo da poderosa FIESP com sua medida provisória 579/2012 que impôs receitas baixíssimas às usinas e linhas da Eletrobras.
Vale a pena entrar nos números que resultaram dessa política. Em tempo recorde, a agência reguladora emitiu uma nota técnica (385/2012-SER/SRG/ANEEL) que, rasgando todos os registros contábeis, até mesmo os aprovados por ela, adotou um modelo matemático para definir que usinas antigas só poderiam cobrar seus custos de operação e manutenção. Em que rio a usina se encontra? Não interessa. Quantas máquinas tem a usina? Irrelevante. Que funções operacionais ela desempenha. Desprezível. Para a ANEEL, apenas dois números são capazes de dizer o quanto uma usina precisa de recursos financeiros. O primeiro, a potência. O segundo, um cálculo de escritório denominado garantia física (GF).
Vejam o exemplo da usina de Furnas, no Rio Grande, Minas Gerais. Ela tem 1216 MW de potência e uma GF de 598 MW médios. O modelo matemático calculou que essa usina deve receber R$ 40,6 por kW instalado por ano. Portanto, com a potência 1216 MW (1.216.000 kW) sua receita anual seria R$ 49.369.600,00. Parece muito, não? Só que essa usina gera 5.238.480 MWh no ano. Portanto, dividindo a receita pela energia, a usina de Furnas recebe R$ 9,42/MWh. Os consumidores pagam mais de R$ 250/MWh mesmo com esses MWh quase gratuitos!
Não foi só Furnas. Cerca de 14.000 MW da Eletrobras passaram a receber essa ninharia. Mesmo assim a tarifa brasileira é uma das mais altas do mundo. Imagine qual seria o preço caso essa “quebra” da Eletrobras não fosse programada. Numa conta aproximada, como as usinas atingidas representam cerca de 16% do total hidroelétrico, se elas estivessem vendendo energia por R$ 200, a tarifa teria que ser 15% mais cara!
Ora, R$ 9,42 equivalem a menos de US$ 3. Procurem apenas um exemplo nesse planeta onde alguma fonte de energia entregue esse serviço por esse valor no longo prazo. Só mesmo no Brasil.
O que realmente envergonha é a cara de pau das figuras no atual grupo no poder, que, diga-se de passagem, tem diversos personagens que estavam no topo do governo anterior supostamente “golpeado”. É evidente que a suspeição fica latente em quem conhece o setor. Como esses senhores não sabiam dos efeitos da fragilização continuada da estatal? Como um certo personagem publica um artigo no jornal Valor em 26 de novembro de 2012 denominado “Medida Provisória 579, a MP da competitividade” elogiando a política que certamente iria quebrar a estatal e hoje esse mesmo senhor ocupa a posição mais alta do Ministério que quer privatizar a empresa? Como é fácil quebrar a Eletrobras!
*artigo publicado originalmente no site Ilumina