O Repasse seletivo de verba referente às ações da estatal não encontra amparo legal. Ou é para todos os municípios ou para nenhum.
Embora a privatização da Corsan seja um desejo pessoal do governador gaúcho, ele precisava do aval dos prefeitos (que são os legítimos donos do negócio) para levar seu plano adiante. Como este processo de convencimento aos prefeitos não foi algo negociado, a opção que restava era que fosse algo comprado.
Para o governador obter êxito em sua empreitada, os prefeitos não poderiam questionar sobre a necessidade, a viabilidade e, muito menos, a legalidade do negócio.
Então, para não houvesse questionamentos, foram oferecidos vários “mimos” aos prefeitos, como construção de praças, avenidas, esgoto pluvial, revitalização de lagos, etc. Obras que não são atribuição da Corsan mas que constaram no Capex como necessidade de investimentos para a universalização dos serviços. Obras que, por conclusão, já estão pagas pelos usuários através da tarifa e que contribuíram para diminuir o preço de venda da estatal.
E também, registrado na lei estadual 15708, a lei da desestatização da Corsan, um outro agrado aos prefeitos que aceitassem o chamado “Termo Aditivo” até a data de 16 de dezembro de 2021.
Na referida lei há a previsão de repasse de ações da Corsan que ficariam sob domínio do estado em caso de venda da estatal. A lei previa que, aos prefeitos que aceitassem os prazos eleitoreiros de Eduardo Leite (ele ainda tinha esperança de ser candidato a Presidente da República em 2022) receberiam ações na proporção da arrecadação da estatal no município.
Após o golpe dado pelo governador em que o Presidente do TCE, mesmo sem qualquer conhecimento do processo de 18 mil páginas que tramita naquela casa, autorizou a assinatura do contrato, Leite pensou ter ficado livre para repassar o dinheiro da compra dos prefeitos.
A grande questão é: Este repasse de dinheiro público aos prefeitos anunciado em 21 de julho de 2023, no valor de R$ 192.743.558,73 foi baseado em qual critério?
Se não, vejamos:
A lei 15708 autoriza sim o repasse de valores aos prefeitos que assinassem Termo Aditivo até a data de 16 de dezembro de 2021.
Mas, a lei deve ser lida no momento atual, após a concretização (mesmo precária) da privatização da Corsan e também analisada na sua integralidade e não só na parte que interessa ao governador.
Lei 15708:
Art. 2º Fica o Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul autorizado a ceder, a título de contrapartida, até o total de 63.000.000 (sessenta e três milhões) de ações da CORSAN, de sua titularidade, aos municípios que venham a firmar, em até 90 (noventa) dias após o início da vigência desta Lei, Termo Aditivo de Rerratificação do Contrato mantido com a Companhia, prevendo, cumulativamente:
II – as cláusulas de que tratam os arts. 10-A, 10-B e 11-B da Lei Federal nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, com a redação dada pela Lei Federal nº 14.026/20.
Ora, nenhum dos 74 Termos Aditivos assinados em 16 de dezembro de 2021 continha o artigo 10-B do Marco do Saneamento. Até por que isso seria impossível.
Este artigo 10-B diz que, para a assinatura do Termo Aditivo, era imprescindível a comprovação da capacidade econômico financeira da Corsan. E esta comprovação só foi fornecida pela Agência Reguladora em 16 de março de 2022. Ou seja, os prefeitos assinaram documento irregular.
O governador esqueceu de ler outro ponto da mesma lei:
§ 7º Em não se concretizando o processo de desestatização de que trata o art. 1º desta Lei até 31 de dezembro de 2022, as ações transferidas, mediante condição suspensiva, na forma do disposto neste artigo, serão automaticamente revertidas ao Estado do Rio Grande do Sul, independentemente de qualquer ato formal do Estado ou dos municípios.
Primeiro, vamos entender o que é uma condição suspensiva:
A condição suspensiva impossibilita a produção dos efeitos até que o evento futuro e incerto seja realizado, logo, jamais existirá aquisição do direito antes do implemento da condição.
E a lei é clara, para surtir os efeitos necessários à transferência de ações aos prefeitos, o processo de desestatização teria que ser concretizado até a data de 31 de dezembro de 2022.
Esta concretização da desestatização ocorreu somente em 7 de julho de 2023 com a assinatura do contrato (de forma precária) de venda da estatal. Ou seja, mais de meio ano além do prazo estipulado em lei.
E a lei não deixa dúvida:
§ 6º O Estado do Rio Grande do Sul firmará, como interveniente, o Termo Aditivo de Rerratificação de Contrato de que trata o “caput”, obrigando-se, exclusivamente, a ceder as ações, observado o cálculo e o preenchimento dos requisitos definidos neste artigo.
Como comprovado, os requisitos não foram preenchidos. E isto, além de claro, é gravíss
Resumo: O repasse de verba não poderia ter sido feito pois em 16 de dezembro o artigo 10-B não estava contemplado e também por que a concretização do negócio se deu meses após o prazo dado pela lei.
Neste caso então, em não havendo critério legal para o repasse seletivo de verba apenas para alguns prefeitos, Eduardo Leite só tem duas opções: Ou cumpre a lei 15708 e retoma para o estado o valor repassado aos prefeitos, ou transfere o valor de ações da Corsan a todos os 317 municípios, independentemente de terem autorizado a venda ou não. Pois estes também foram responsáveis por construir este vasto patrimônio da estatal.
Em tempo: A Assembleia Legislativa do estado fará “vistas grossas” para este flagrante descumprimento da lei aprovada na própria Casa? Se for assim, qual a vantagem do cidadão pagar o custo de uma Assembleia Legislativa se é para fazerem leis que se tornarão inócuas pela falta de fiscalização dos próprios deputados?
(*) Rogério Ferraz é Diretor de Divulgação do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul – Sindiágua/RS.