Artigo: Lucas Tonaco*
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O verdadeiro é o todo
HEGEL – Prólogo da “Fenomenologia do Espírito”, conforme citado em “Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin: ensaio crítico sôbre a escola neohegeliana de Frankfurt” – página 101, Por José Guilherme Merquior, Publicado por Ed. Tempo Brasileiro, 1969, 311 páginas

Não é de hoje que a temática do capitalismo financeiro, sobretudo o transnacional em sua fase atual, se torna essencial para a compreensão dos fenômenos nacionais – para além da Teoria Marxista da Dependência e para além das teses sobre a complexidade dos stakeholders no controle das empresas mistas do Brasil, derivando discussões sobre EVA (Economic Value Added), direcionamento do controle do  EBITDA para retiradas e dividendos cada vez mais agressivos, impactando em corte de custos que prejudicam a complexificação econômica, estrutura de produtividade, formação de know-how ou CAPM (Capital Asset Pricing Model), agora fica evidente, após decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), uma contradição básica: a de que os acionistas atuais – principalmente os internacionais – podem ser um enorme obstáculo nas privatizações.

A citação a Hegel nos submete além da dialética das contradições do capital, ela submete a uma parte essencial da interpretação dos fenômenos, a de que é preciso entender o todo, e o todo é complexo: história começa de um jeito bem interessante – os ditos governos militares e sua política calcada em “desenvolvimentismo” nacional e infraestrutura, fez contradições desde de sua origem – inserção da Lei das S.A. e o impacto de uma configuração de empresas mistas. Um Brasil ainda interiorizado, que tinha necessidades eminentes por uma industrialização maior e emergentes de urbanidades, consequentemente os fenômenos do êxodo rural se intensificando nas décadas de 60 e 70, emergindo uma contradição que para Sérgio Buarque de Hollanda na hegemonia do patriarcado rural o impeditivo da formação de uma burguesia urbana que propicia uma cultura liberal, propriamente tardia, como também expõe as teses de Caio Prado Jr. Toda essa necessidade de infraestrutura nessas urbanidades foi então colocada e para o saneamento, era necessário então um plano, para realização de altíssimos investimentos para “modernizar”, foi aí então que se institui o Plano Nacional de Saneamento – PLANASA, iniciando os estudos em 1969, e com interfaces de gerenciamento pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), que aplicava recursos próprios e do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) tudo com uma interoperabilidade do o Sistema Financeiro do Saneamento – SFS (1968), desde de aí, portanto, saneamento que era municipalizado em sua maioria encontrou obstáculos de institucionalidade política, pois as empresas estaduais de saneamento básico, como COPASA (MG) e SABESP (SP) foram englobando em sua etiologia DMAE’s e, SAAE’s estados adentro.

Porém, a configuração de financiamento ainda era um ornitorrinco e saneamento requer dinheiro, muito dinheiro e a longo prazo e aí se insere uma processo importante: o da internacionalização do financismo.  Em suas fases expansionistas, de 70 até 80, e chegando em 90 com o locus e zeitgeist na discussão sobre neoliberalismo, principalmente devido a Thatcher (Reino Unido), Reagan (Estados Unidos da América)  e Pinochet (Chile), Collor, e sua “abertura” e seu planejamento de privatização acirra o debate sobre ainda mais financismo nessa abertura, o artigo Privatizações do saneamento e da energia no Brasil – etapas recentes de um processo em \” (FERREIRA, 2024) discorre sobre este período desde de o debate sobre filosofia de Estado até as intervenções do FMI (Fundo Monetário Internacional) . Já no final da década de 90, o lançamento de  IPO’s (Initial Public Offering) agrava, portanto a etapa da financeirização internacionalista, um processo que têm imenso impactos hoje e forma aqui a contradição essencial, para se ter dimensão deste processo,  na Petrobras, em 2024, aproximadamente 43% das ações estão nas mãos de investidores estrangeiros, na SABESP, aproximadamente 20%, e na COPASA, quase 30%, o caso da COPASA, foi abordado no artigo “A COPASA e as contradições da financeirização e internacionalização em sua fase atual”(FERREIRA, 2024), e chama atenção para um objeto em especial conforme trecho do artigo: “concentração e disparidade do capital é absurda, chegando a estar concentrada na mão de 337 acionistas contra 156.493 nacionais, que detém 21,77% da companhia”, qualquer tese de Bourdieu levando em conta o campo e o habitus levaria aqui a convergência do capital econômico em capital político e vice-versa, inserindo o óbvio do realpolitik – o concentracionista do capital acionário minortiário se traduz também na defesa deste mesmo capital em Longue Dureé. Desde de o fator cultural em termos de política antropológica de qual seria a motivação para estrangeiro terem a prática de investirem em ações para resguardar suas poupanças até porque nestes mesmos países o Estado não fornece uma previdência completamente pública como default de opção política – aqui um alvo interessante para abordagens da Teoria Nudge de Richard Thaler – até mesmo sobre fatores sociológicos de uma determinada ética para além da protestante, como versa Weber, passando pelas questões geopolítica de como a riqueza das nações formam através da exploração em outras nações até questões das fases do capitalismo financeiro,  o fato é que nestes países há um excedente propiciando poupança, e devido a questões cambiais, taxas de juros absurdamente desiguais e consequentemente outros fatores fazem com que fundos de pensões de trabalhadores estrangeiros, há muito tempo, optaram por aplicações em longo prazo – e eis aqui uma parte fundamental – no capitalismo é necessário segurança jurídica, para assegurar contratos e nada melhor do que um estado como sócio.

Acima temos portanto três elementos, sendo premissas do processo dialético contraditório, sendo que os fundos de pensão pensando modelos para longo prazo e tendo o estado como sócio, lastreados em fundamentos econômicos muito sólidos – realização de investimentos em infraestruturas em um território onde não há universalização do saneamento ou longe disso. Ninguém vive sem água, e os investimentos massivos são essenciais. Aqui a fórmula perfeita: com sustentabilidade e o mínimo de eficiência em uma gestão estatal (que gera capital político para seus mandatários) e com as concessões municipais em 35 anos das empresas estaduais mistas de saneamento que expandem cada vez mais com a tendência de monopólio natural, a rigor, vão garantir belas fatias de dividendos ao mesmo tempo, estáveis, com tendências de inadimplência, precificação, custo regulatório ajustado, tudo se torna um tipo de investimento ideal para estrangeiros, especialmente com perfil conservador, que para dispor de qualquer alteração do deslocamento do estado como sócio,  mudanças de controle acionário ou qualquer tempestade da vez, teriam uma precificação – aqui vem o tag along ou o drag along, como instrumentos.

Aí vêm a contradição mais recente, contrariando um avanço no capitalismo clientelista ou capitalismo de compadrio, que com discurso falsamente liberal oportunista da vez, usado pela extrema-direita, muitas vezes, o capitalismo mostrou em sua face uma lição interessante recentemente no Brasil – não a diferença entre preço, valor e faces da fiduciariedade de um fenômenos de privatização com base nas expectativas, onde muitas vezes o fenômeno do wishful thinking e das profecias auto-realizáveis são postos mas que esquecem que nem mesmo o capitalismo é um monolito e há grupos ou seja, frações nesse mesmo capitalismo com perspectivas não necessariamente convergentes. Essa semana, uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), modificou uma tendência e expôs uma dessas faces na interface inclusive internacionalista deste capital financeiro, conforme matéria veiculada no Portal Migalhas:  “Nesta terça-feira, 18, a 3ª turma do STJ analisou um importante caso envolvendo o grupo ítalo-argentino Ternium e a brasileira CSN. Com o voto de desempate do ministro Antônio Carlos Ferreira, o colegiado decidiu que a CSN receberá uma indenização de cerca de R$ 5 bilhões, a ser paga pela Ternium. Na disputa judicial, a CSN alega que houve uma mudança no controle da siderúrgica mineira Usiminas em 2011, quando a Ternium adquiriu as participações dos grupos Votorantim e Camargo Corrêa – uma fatia de 27,7%. Segundo a CSN, essa alteração no bloco de controle obrigaria a Ternium a fazer uma oferta pública de ações (OPA) aos acionistas minoritários. Por outro lado, a Ternium sustenta que não houve troca de controle, argumento confirmado pela CVM – Comissão de Valores Mobiliários em decisões anteriores.”O ingresso do grupo Ternium no bloco controlador e as modificações implementadas com o novo pacto de acionistas implicaram transferência do controle acionário da Usiminas, atraindo a aplicação do comando previsto no art. 254-A da lei de regência”, afirmou”. 5 bilhões a mais e as ações subindo mais de 9% em único dia, assim terminou algo que terá iniciado um impacto na atual discussão da SABESP e vai influenciar discussões de outras privatizações, tais como a Petrobras ou por exemplo a COPASA, pois o mesmo teria que ocorrer em tais empresas, abaixo da positivação da mesma Lei das S.A’s,

Ocorre que, no resumo da opera narrada acima: a validade dos instrumentos de tag along ou drag along e uma modificação na tendência atual da CVM, fazem com que cria-se um obstáculo inclusive para as privatizações que não vai bastar ter fatia do financismo e sim o todo. Sabe-se muito bem que as operações de privatização no saneamento só são viáveis devido a assimetrias extremamente sensíveis – seja no caso da CORSAN, onde um valuation abaixo foi considerado ou seja no caso da CEDAE onde as tarifas estão aumentando para além do projetado, em regra, é que o payback conjuntamente com as modificações tarifárias elevadas seja sempre longo, e isso em uma situação anterior a decisão do STJ, agora, os absurdos terão que ser maiores ainda e os obstáculos estão colocados para os privatistas, inclusive está posto uma tendência de predação curto prazista que contraria o perfil dos investidores minoritários que detêm capital importante e  em algumas vezes superior até o dos nacionais, os estrangeiros. Se mantida a tendência, o governo Tarcísio sofrerá uma imensa derrota, as narrativas privatistas na COPASA, também, e o povo? Uma vitória, até porque está exposto em centenas de artigos e experiências de que quão mais longe está a privatização no saneamento, quão mais perto está a justiça social das tarifas mais baixas e serviços melhores prestados e a universalização igualitária.

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU, dirigente do Sindágua-MG, acadêmico em Antropologia Social e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)