Na primeira metade do século passado, as famílias se orgulhavam de ter crianças e jovens matriculados nas escolas públicas mais bem conceituadas. Os alunos ostentavam o uniforme escolar e sabiam de cor o nome e o sobrenome das professoras. Os educadores eram figuras respeitáveis e ilustres na sociedade local, assim como médicos, farmacêuticos e juízes.
Na década de 1970 já era esporte da classe média reclamar da precariedade das comunicações, do ensino e dos hospitais públicos. Pagava-se uma pequena fortuna para ter uma linha telefônica fixa residencial. Quem podia mantinha os filhos em escolas particulares, ainda que tivesse de recorrer a empréstimo bancário para bancar a taxa de matrícula e o material escolar. Com uma renda familiar maior ou um pouco mais de sacrifício – a venda de um carro, joias ou imóvel -, era possível pagar por consultas médicas ou, até, uma internação particular. Valia tudo para contornar as limitações dos serviços públicos.
A partir de 1980, as franquias de sistemas de ensino e os planos de saúde privados vieram para ficar. As escolas particulares tornaram-se acessíveis a uma parcela maior da população. A carteirinha do plano de saúde tornou-se o passaporte para a eficiência e agilidade do atendimento nos serviços médico-hospitalares. Paulatinamente, a mesma promessa de maior cobertura, eficiência e melhor qualidade no setor privado estendeu-se à telefonia fixa e móvel, TV por assinatura, acesso à Internet, distribuição de energia elétrica, rodovias e outros serviços. E tomamos privatizações e concessões, a serem fiscalizadas pelas agências regulatórias governamentais de cada setor.
Com a perspectiva de o setor privado suprir as carências dos serviços públicos, muitos brasileiros se desinteressaram pelas eleições de membros e participação nas reuniões dos Conselhos Municipais de Saúde e Educação, entre outros conselhos abertos à sociedade civil. Grande parte do nosso povo simplesmente desconhece a existência e a relevância desses conselhos para formular e fiscalizar a execução de políticas públicas.
Lá se vão 30 anos desde que o Brasil surfou a primeira onda privatizante em direção ao Estado mínimo. Houve incontáveis fusões e aquisições das empresas privadas com capital estrangeiro. Algumas até precisaram mudar de nome e logotipo para escaparem da profunda antipatia popular diante dos péssimos serviços prestados
Hoje, despencamos na estafa institucional, social e econômica que faz o Brasil bater recordes de descrença, violência e desemprego. O sonho brasileiro de modernidade privada virou pesadelo de um tecido social puído pelo ódio.
Com exceções, claro, mesmo no setor privado nosso povo não apenas se desacostumou a conhecer professores, médicos, farmacêuticos e outros profissionais pelo nome – agora são todos só ou “o tio”, ou “a vó”, ou “o cara da farmácia” -, como passou a lhes dedicar franca hostilidade e total desconfiança.
Caminhões e carretas que fogem das tarifas de pedágio em rodovias administradas por concessionárias esburacam, impunemente, as vias públicas incapazes de suportar tráfego pesado nas 24 horas, de domingo a domingo. O ônus do tapa-buraco nas rotas de fuga recai sobre as prefeituras; o das rachaduras nas moradias, sobre os infelizes proprietários. O que dizem e fazem as agências reguladoras de transportes a esse respeito?
Cidadãos que ainda podem pagar as mensalidades de plano de saúde, usualmente reajustadas bem acima dos índices oficiais da inflação, esbravejam que o atendimento nos serviços médicos credenciados pelo plano consegue a façanha de ser pior do que o do SUS.
Fazer com que várias empresas privadas de telefonia, TV por assinatura, acesso à Internet, planos de saúde e distribuição de energia elétrica cumpram o que está no contrato de prestação de serviços e no Código de Defesa do Consumidor é motivo justo de indignação, azia e insônia para muitos brasileiros. Os PROCONs estão abarrotados de queixas. Sorte dos advogados especializados em Direito do Consumidor e do dono do site Reclame Aqui.
Onde foi que falhamos?
Além de nominar os culpados por essa lambança, é bom os cidadãos e cidadãs deste país arregaçarem as mangas em defesa do que resta do nosso patrimônio público, antes que algum irresponsável proponha privatizar até o Judiciário. (fonte: Jornal GGN)