Artigo de Dr. Luiz Alberto Rocha
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Proposta que cria instabilidade no cumprimento da meta de universalização.
Quadro geral do desenvolvimento da produção de infraestrutura
Tramita na Câmara dos Deputados proposta do NOVO que pretende alterar a Lei n. 11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais do saneamento, que foi fortemente alterada pela Lei n. 14.026/20 apostando na realização da política pública de saneamento a partir de investimentos privados visando universalizar o acesso à água e o tratamento de esgoto sanitário até 2033.
A centralidade da proposta do PL 2.072/2023 é “vedar a equiparação à prestação direta, sem licitação, a prestação dos serviços públicos de saneamento básico em determinado município realizado por entidade que integre a administração de outro ente federativo” Assim, vejamos primeiramente do que se trata a prestação direta regionalizada nos serviços de saneamento básico para, em seguida, discutir os méritos do projeto.
A questão da titularidade da competência federativa para o exercício do saneamento básico não teve indicação precisa na CF/88, razão pela qual o STF definiu a competência municipal, mas com atenuações devido à amplitude de circunstâncias técnicas do saneamento.
O temperamento da titularidade municipal do saneamento público efetivou-se pela prestação regionalizada por meio de gestão associada de forma voluntária ou de integração obrigatória na forma de região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião. Tudo a permitir ganhos de escala em favor da universalização e, ao mesmo tempo, a modicidade tarifária para que todos se beneficiassem dos ganhos sanitários.
Quando da mudança do parâmetro da política pública de saneamento foi aprovada e declarada constitucional, a prestação regionalizada ficou mais explícita ao estabelecer a possibilidade de prestação direta de interesse local pelos Municípios e DF, bem como a regionalização da prestação, em cooperação interfederativa entre Estado e Municípios, com objetivo declarado de cumprir o desígnio do planejamento e execução comuns.
O modelo de regionalização pós-14.026/20 que predomina é o das Microrregiões de Saneamento Básico em que se regionaliza a prestação sem suprimir a autonomia política dos Municípios que passam a decidir, em conjunto com o Estado, por meio de um Colegiado Microrregional que, dentro da governança microrregional, é o órgão máximo de deliberação sobre a prestação regional.
A prestação regionalizada permite que diversos arranjos regionais pudessem ser realizados visando permitir a sustentabilidade econômico-financeira apta à universalização.
Uma das possibilidades é que o Colegiado Microrregional autorize que a prestação seja realizada diretamente por ente integrante da administração pública de um dos integrantes da microrregião de saneamento. Aliás, o Decreto n. 11.467, de abril de 2023, previa a prestação regionalizada “por meio de órgão de sua administração direta, ou por autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista que integre a sua administração indireta”.
É certo que tal Decreto foi revogado pelo Decreto n. 11.599, de Julho de 2023, mas também é certo que a prestação direta regionalizada não foi proibida pelo novo Decreto, ainda mais porque ela é uma forma constitucional e legal de prestação que independente da previsão regulatória.
Aqui está o ponto de discórdia do NOVO, pois segundo a proposta a prestação direta regionalizada burla o princípio da licitação porque a prestação direta sem licitação só poderia ser feita diretamente pelo próprio titular do serviço. Ademais, o projeto, segundo a Comissão de Desenvolvimento Urbano, é válido para acabar com as discussões sobre o tema a favor da maior estabilidade no ambiente institucional ao promover a competição no mercado do saneamento e permitir a seleção competitiva do prestador de serviços.
A proposta, no entanto, enfrenta algumas barreiras que nos parecem difíceis de superar. Vejamos.
Em um primeiro lugar, há limite constitucional de regulamentação do setor de saneamento, pois a proposta pretende incluir restrição à autonomia política dos integrantes do Colegiado Microrregional de decidirem regionalmente sobre a prestação do saneamento básico que melhor atenda ao interesse público.
Ora, o modelo de prestação regionalizada foi seguido em diversos Estados brasileiros que criaram, por meio de lei complementar estadual, as microrregiões de saneamento para exercerem a função comum de planejamento, regulação, fiscalização e prestação direita ou contratada dos serviços públicos de saneamento básico.
Portanto, o desenho permite que a competência regional, por meio das microrregiões, garanta o exercício soberano da titularidade constitucional da prestação do saneamento no atendimento do interesse público. O que não pode ser reduzido por atividade legislativa posterior que pretende, inclusive, dar efeitos repristinatórios aos arranjos regionais já em vigor, acarretando a insegurança regulatória tantas vezes denunciada pela iniciativa privada.
Por outro lado, a lei nacional do saneamento permite que os Estados utilizem sua competência legislativa suplementar para regular a regionalização do saneamento, o que já foi feito. Logo, a proposta legislativa aqui tem alto potencial de violação da titularidade da competência regional de Estados e Municípios integrantes de microrregiões de saneamento.
Isto porque, definido o âmbito da competência regional pelo STF e formalizadas as microrregiões por lei complementar estadual. E ainda, deliberada soberanamente pelo Colegiado Microrregional que a prestação direta regionalizada melhor atende ao interesse público. É de se concluir que a proposta legislativa não pode inovar para restringir a autonomia político-constitucional dos entes federativos por estabelecer inconstitucional hierarquização do Legislativo da União com desrespeito à separação das funções do Poder e às autonomias federativas do Estado e Municípios integrantes da microrregião.
Ademais, a competência dos entes integrantes da microrregião em definir o melhor arranjo administrativo para a prestação do saneamento não pode ser substituída por uma decisão ex ante de agente externo e distante do cenário regional e, portanto, desconhecedor do modelo que melhor atende ao interesse público.
É de se presumir que a escolha do Colegiado Microrregional pela prestação direta regionalizada seja tão legítima quanto se o fizesse pela prestação indireta de empresa privada.
E ainda, diferentemente do que pretende a Justificativa do PL, se o Estado também é titular do saneamento quando formada a Microrregião, então a prestação realizada por entidade de direito público ou privada de qualquer dos entes titulares dos serviços públicos, inclusive o próprio Estado, é legitimamente sustentada pelo art. 175, CF/88, sem qualquer violação ao princípio licitatório.
Resta concluir que a prestação direta regionalizada não é decisão que “dispensa licitação”, mas trata-se de cooperação interfederativa para a prática de competência comum regionalizada decorrente da escolha do Colegiado Microrregional. E que respeita o exercício colegiado da competência de saneamento na esteira do entendimento do STF na ADI 1842/RJ.
Em conclusão, a proposta legislativa que pretende aperfeiçoar o marco legal do saneamento parece, sim, trabalhar em sentido contrário, ao promover alteração na modelagem jurídica vigente e já em utilização em alguns Estados brasileiros.
Deste modo, acaba por criar instabilidade no horizonte de investimentos já planejado nas microrregiões por restringir a escolha dos titulares de saneamento básico, inclusive com pretensão repristinatória, sem nenhum aparente ganho para o alcance das metas de universalização.
*Dr. Luiz Alberto Rocha – Assessor jurídico da FNU. Doutor em Direito do Estado/USP. Professor Associado da Faculdade de Direito e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito e Desenvolvimento da Amazônia, ambos da UFPA. Advogado.