artigo: Ikaro Chaves*
Os caminhos do desenvolvimento do setor elétrico brasileiro estão intimamente ligados às opções políticas e econômicas do próprio País. Da mesma forma que o Brasil como um todo, nosso setor elétrico desenvolveu-se de forma quase vegetativa até a revolução de 30, quando o modelo totalmente privado e desregulamentado dava claros sinais de ineficiência, cobrando tarifas abusivas da população e pouco se importando em expandir-se para áreas de pouca atratividade econômica. A partir daí o País seguiu num crescente de regulamentação e estatização de praticamente todo o sistema elétrico, num ciclo que vai até o início dos anos 90 do século passado e que garantiu o suporte necessário para o poderoso processo de industrialização verificado nesse largo período histórico.
Uma das principais características do processo de industrialização brasileiro foi a política de substituição de importações, usando para isso boa dose de protecionismo e também a construção de grandes empresas estatais em setores estratégicos, funcionando como polos dinamizadores de cadeias produtivas nacionais. Empresas como a Petrobras, a Telebrás, a Companhia Vale do Rio Doce, todo o complexo siderúrgico estatal, dentre outras, não só supriram o País da infraestrutura necessária para o desenvolvimento, mas criaram também uma demanda forte e estável para produtores de máquinas e equipamentos, sejam multinacionais que se instalaram no País, sejam mesmo empresas de capital nacional.
Política protecionista, grandes empresas estatais em setores estratégicos e uma rede de centros de pesquisa, envolvendo as universidades, as próprias empresas estatais e as empresas privadas fornecedoras. Esse tripé garantiu ao Brasil a condição de liderança tecnológica dentre os países em desenvolvimento, o que ficou demonstrado no domínio de setores de ponta como o nuclear e o aeroespacial.
No caso do setor elétrico houve algumas particularidades que contribuíram ainda mais para o sucesso da indústria relacionada. Em primeiro lugar havia a dependência brasileira do petróleo importado, o que se agravou ainda mais com os choques do petróleo dos anos 1970, em contrapartida o enorme potencial hidrelétrico brasileiro foi a alternativa encontrada como fonte primária para o setor elétrico. Isso gerou também oportunidades para a consolidação de grandes empresas de construção civil, de equipamentos de mecânica pesada, dentre outros, que devido a características intrínsecas favoreceram a produção local em detrimento da importação.
A construção de alguns triunfos da engenharia mundial, como Itaipu, maior usina hidrelétrica do mundo em geração anual de energia, Tucuruí, no meio da floresta Amazônica, as usinas nucleares Angra I e II, além do próprio Sistema Interligado Nacional (SIN), único no mundo, não só dotaram o País de energia firme, renovável e barata para atender as necessidades energéticas de uma das economias que mais cresceram no mundo durante o século XX, mas criaram poderosas empresas nacionais no ramo da construção civil, da metal mecânica, da mecânica pesada e de equipamentos elétricos como um todo.
Empresas como Camargo Correia, Odebrecht e Engevix na área da construção civil e de outros ramos da engenharia, produtores de equipamentos como a Villares, Bardella e a própria WEG, uma das maiores fabricantes de motores e equipamentos eletromecânicos do mundo, devem muito de seu desenvolvimento à parceria com a Eletrobras. Seja por meio do CEPEL (Centro de Pesquisa do Setor Elétrico) Maior centro de pesquisa do tipo na América Latina, seja por meio da demanda gerada por grandes obras, a Eletrobras contribuiu decisivamente para a formação de uma indústria competitiva não só no país, mas internacionalmente.
A partir dos anos 1990, entretanto, e no rastro da reforma mercantilista do setor elétrico brasileiro, a Eletrobras e as demais empresas estatais do setor que escaparam da privatização viram seu papel ser reduzido em todos os campos, inclusive como motores da cadeia da indústria de equipamentos. Nem mesmo a recuperação da Eletrobras nos governos Lula e Dilma foi capaz de reafirmar a empresa como polo dinamizador da indústria. Ao contrário do que aconteceu no setor de óleo e gás, onde foi implantada uma vitoriosa política de conteúdo nacional, no setor elétrico predominou a política da modicidade tarifária a qualquer custo, o que levou à importação de pacotes tecnológicos estrangeiros, já prontos e muito mais baratos.
O Brasil realizou verdadeiros prodígios de engenharia, construiu uma das matrizes energéticas mais limpas e renováveis do planeta, obras gigantescas, um sistema interligado de fazer inveja e além de tudo, conseguiu dominar toda a tecnologia de Geração Transmissão e Distribuição de energia elétrica, sendo inclusive fornecedor global. Entretanto, ao mesmo tempo em que o governo federal propõe a privatização da maior empresa de energia elétrica da América Latina o mundo vive uma importante transição tecnológica no setor, ingressando aceleradamente na era da geração distribuída, com grande desenvolvimento das fontes eólica e solar, do carro elétrico e para gerenciar tudo isso será necessário um novo sistema elétrico, uma rede inteligente, a Smart Grid.
O precedente histórico é preocupante. Nos anos 90 séculos passado, enquanto o setor de telefonia passava por uma grande transição tecnológica com a implantação no Brasil da telefonia celular e da própria internet. A Telebrás tinha total domínio da tecnologia de telefonia fixa analógica e o Brasil havia desenvolvido uma importante indústria voltada para o setor. Com a privatização, a transição tecnológica foi feita com a importação de pacotes tecnológicos prontos e a indústria nacional do setor praticamente deixou de existir, assim como engenharia nacional na área de telecomunicações.
A título de exemplo, de acordo com dados do MDIC (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços) e da ABINEE (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica) as exportações brasileiras no setor de telecomunicações passaram de US$ 1,310 bilhões em 2000, logo após a privatização do sistema Telebrás de 1998, para US$ 199 milhões em 2016. Ou seja, 16 anos após a privatização a capacidade do setor de telecomunicações em competir internacionalmente diminuiu quase sete vezes. O Brasil, que em 2000 exportava mais do que importava nesse setor, passou a importar nove vezes mais do que o valor exportado em 2016.
A privatização da Eletrobras não é processo isolado, não põe em risco apenas o setor elétrico brasileiro e a economia popular. Ela está relacionada a um projeto de destruição da engenharia nacional, cujo desmantelamento da Petrobras e de toda a cadeia nacional de óleo e gás, além da destruição da indústria naval são os principais expoentes do momento.
Não existe soberania sem domínio da ciência, da tecnologia, dos processos produtivos e uma engenharia forte, portanto a privatização da Eletrobras significará para o Brasil abrir mão de qualquer possibilidade de ter uma indústria própria e autônoma num setor vital para qualquer País. É preciso construir um novo projeto nacional de desenvolvimento, com soberania e justiça social e para isso defender a Eletrobras e demais empresas estatais de engenharia e tecnologia é condição indispensável.
*Ikaro Chaves é dirigente do Stiu-DF
Publicado originalmente no Stiu-DF